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CULTO AO CORPO E (AL CUERPO Y ) COMPORTAMENTOS ALIMENTARES ANORMAIS ENTRE ESTUDANTES DE MEDICINA
(especial para SIIC © Derechos reservados)
Autor:
Maria Lúcia Bosi
Columnista Experta de SIIC

Institución:
Faculdade de Medicina/Universidade Federal do Ceará

Artículos publicados por Maria Lúcia Bosi 
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Conclusión breve
Sabe-se que o culto a ideais (Es conocido que el culto a ideales) de beleza vinculados à magreza apresenta-se (con la delgadez, se presenta), de forma cada vez mais expressiva, como uma questão central que transversaliza (atraviesa) diferentes segmentos sociais, dentre eles o (entre ellos el) grupo aqui focalizado, disputando prioridade com a saúde (con la salud).

Resumen

O presente artigo resgata a (rescata la) elevada e crescente prevalência de comportamentos de risco para transtornos do comportamento alimentar (de riesgo para trastornos del comportamiento alimientario) (TCA) e de insatisfação com a (y de insatisfacción con la) imagem corporal entre estudantes da área da saúde e (del área de la salud y), em particular, de medicina, como fenômenos que sinalizam a necessidade de reflexão e produção cientifica, tanto relativa à sua gênese (que señalan la necesidad de una reflexión sobre su génesis) como a seus desfechos (sus resultados). Sabe-se que o culto a ideais de beleza vinculados à magreza apresenta-se (la delgadez se presenta), de forma cada vez mais expressiva, como uma questão central (como un tema central) que transversaliza diferentes segmentos sociais, dentre eles o (entre ellos el) grupo aqui focalizado, disputando prioridade com a saúde. Nesse cenário, o atual (En este escenario, el actual) modelo formador das escolas médicas, com sua concepção de homem, corpo e natureza alinhada aos cânones da (alineada con los cánones de la) biomedicina, acentua a dimensão biológica em detrimento da social e simbólica, operando uma exclusão preocupante da subjetividade, inclusive a do (del) educando. Noutras (En otras) palavras, a formação universitária em medicina parece não estar contribuindo para que os futuros profissionais de saúde sequer discriminem e se protejam (incluso discriminen y se protejan) do risco de desenvolver TCA cujos (cuyos) diagnósticos, de outra parte, serão de sua (serán de su) competência futura. A formação destes profissionais precisa ser revista levando-se em conta (revisada teniendo en cuenta) que estes podem ser, muitas vezes, portadores invisíveis (muchas veces, portadores involuntários), que necessitam de espaços de reflexão e discussão aprofundadas sobre o contexto em que atuarão, no qual (en el que actuarán, en el que) predominam valores relacionados à estética em detrimento daqueles relacionados à saúde, valores esses dos quais eles próprios são reféns (de los cuales ellos mismos son referentes).

Palabras clave
comportamento alimentar, conductas alimentarias, educação médica, educación física, saúde coletiva, imagen corporal, imagem corporal, salud colectiva, estudantes de graduação, estudiantes de medicina

Clasificación en siicsalud
Artículos originales> Expertos del Mundo>
página www.siicsalud.com/des/expertos.php/138954

Especialidades
Principal: Educación MédicaNutrición
Relacionadas: Atención PrimariaEpidemiologíaSalud Mental

Enviar correspondencia a:
Maria Lúcia Bosi, 60170020, Fortaleza, Brasil


Cult of the body and abnormal eating behaviors among medical students

Abstract
Introduction: This article discusses the growing prevalence of behaviours of risk of eating disorders (ED) closely linked to dissatisfaction with body image among students in the area of health, and medical students.

Objective: EDs are phenomena that indicate the need for reflection and scientific production regarding both genesis and possible outcomes. It is known that the cult surrounding the ideals of beauty associated to thinness is increasingly seen as a central issue for health among different social groups, including the group which is the focus of this analysis.

Results/Discussion: In this scenario, the current curriculum of medical schools, with their conception of man, body and nature aligned with the foundations of biomedicine, emphasizes the biological dimension to the detriment of social and symbolic aspects, resulting in a worrying exclusion of subjectivity in the training process. Medical schools, it seems, do not fully enable future physicians to diagnose EDs or to protect themselves from the risk of developing them. Moreover, they do not establish a basis for effective care, and we should remember that the task of diagnosis is the responsibility of this professional segment.

Conclusions: The training process needs to be revised, bearing in mind that future doctors can often be invisible carriers of such disorders, revealing the need for spaces for reflection and profound discussion on the context in which they are to act, in which aesthetic values predominate over those related to health; values of which they themselves are references.


Key words
eating behaviour, medical education, public health, body image, undergraduate student


CULTO AO CORPO E (AL CUERPO Y ) COMPORTAMENTOS ALIMENTARES ANORMAIS ENTRE ESTUDANTES DE MEDICINA

(especial para SIIC © Derechos reservados)
Artículo completo
Introdução

Nas sociedades ocidentais modernas, o culto ao corpo e a preocupação com o peso corporal apresenta-se, de forma cada vez mais expressiva, como uma questão central que transversaliza diferentes segmentos sociais, disputando prioridade ante outros aspectos e, não raro, distanciando-se de um cuidado com a saúde. Tal postura se expressa, na esfera da saúde, como produção subjetiva consequente às disputas mercadológicas que se estabelecem no contexto social. Conforme amplamente documentado, a chamada indústria da magreza e da beleza gera lucros incalculáveis para os mais diversos grupos econômicos estabelecendo um consórcio promissor do qual participam a indústria alimentar (sobretudo a diet e light e de suplementos); os laboratórios e sua intensa produção de anabolizantes; a industria têxtil; a tecnologia médico-estética, dentre outras, que, com forte amparo no suporte midiático desencadeiam processos complexos, nos planos objetivo e subjetivo.

Nesse âmbito, cabe destacar o fascínio exercido sobre vários segmentos, em especial o feminino, levando à busca constante e obstinada por um corpo socialmente considerado belo e, no limite, perfeito segundo ditames hegemônicos meta, quase sempre, inalcançável. Alguns autores vem chamando atenção para a grande influencia de padrões de imagem corporal ocidentalizados na propagação de uma cultura/ditadura do corpo magro em vários países ao redor do mundo, inclusive em culturas não ocidentais e em países em desenvolvimento.1-4
Os mecanismos por meio dos quais se difundem tais valores são complexos e difusos, concentrados nos meios de comunicação dos quais os grupos econômicos lançam mão já que dependem, para sobreviver, de um mercado consumidor ativo impulsionado pela produção constante de novas necessidades e, consoante o modelo das sociedades de consumo, de novos produtos visando a satisfazê-las. Através dos meios de comunicação impõem-se, assim, a cultura do belo levando à emergência de transtornos mentais específicos que podemos denominar como doenças da beleza especialmente na população adolescente e jovem adulta. Como consequência, a incidência de problemas relacionados à distorção da imagem corporal e de transtornos do comportamento alimentar (TCA) tem aumentado na sociedade moderna.3-6
TCA são definidos como desvios do comportamento alimentar, incluindo anorexia nervosa (AN), bulimia nervosa (BN) e outros transtornos alimentares não-específicos,7 que, por serem transtornos mentais, podem levar a sérias consequências psiquiátricas e médicas,8,9 inclusive ao óbito.10 Um outro fator complicador destes transtornos se deve à seu caráter crônico, persistente e refratário ao tratamento.7
Os TCA são desenvolvidos sobretudo por pessoas do sexo feminino, na transição da adolescência para a idade adulta,9,11 coincidindo com um período da vida de intensas mudanças.7,12 Além disto, a literatura aponta que a prevalência de distúrbios do comportamento alimentar pode ser substancialmente modificada em função das atividades diárias ou profissionais,7,13,14 havendo indícios de risco aumentado para TCA entre estudantes da área de saúde,13,14 em especial, estudantes de medicina.

Apesar da ampliação do número de estudos nacionais publicados sobre a prevalência de TCA em estudantes da área de saúde,13-30 a maioria é realizada com amostras pequenas e especificas, sendo poucos os estudos desenvolvidos com alunos de medicina.28-30 Tal lacuna é preocupante haja vista o profissional médico desempenhar papel central no processo de diagnóstico dos TCA sendo, portanto, estratégico explorar e compreender, mediante estudos epidemiológicos e pesquisas qualitativas a ocorrência desses agravos junto a este segmento.

Conforme algumas evidências vem sustentando, inclusive achados de estudos ainda em curso no nosso grupo, estudantes de medicina, ao contrário do que sua formação levaria a presumir, não se encontram mais protegidos dos valores que permeiam a sociedade da qual fazem parte, no que tange à construção da imagem corporal. Ao contrário: a literatura vem alertando para a magnitude dos problemas de saúde física e mental que acometem justamente estudantes e profissionais de medicina,28-31 constituindo um objeto relevante a ser pesquisado, dado serem os médicos atores fundamentais na disseminação de concepções cientificas que contribuem para configurar a subjetividade sobre temáticas relacionados ao corpo, saúde e beleza.32 Além disso, evidências indicam que estes, tal como ocorre com outros agravos, tendem a atrasar a busca de ajuda e tratamento quando estão sofrendo de TCA por temerem repreensões ou estigmatização que prejudiquem seu conceito/imagem profissional.31
Diante do exposto, se nos impôs como indagação questões como as que segue: estariam nossos estudantes/profissionais amparados por um modelo adequado à complexidade desses quadros ou o modelo formador, ao excluir a subjetividade, operaria uma redução limitadora? De que modo as limitações na assistência expressam a representação desses profissionais que, em lugar de curadores operariam como multiplicadores dos TCA e demais doenças vinculadas à imagem corporal e práticas alimentares? Nossas investigações33-35 nos levam a sustentar que o discurso formador não instrumentaliza suficientemente para um recuo simbólico ante a cultura da beleza e sua mercantilização, tampouco para um cuidado fundado na intersubjetividade. Torna-se portanto importante discutir a gênese desses comportamentos na interface com a formação médica e os elementos que a configuram na atualidade, com vistas a subsidiar o aperfeiçoamento do modelo formador, como estratégia de prevenção ante esses agravos e como ferramenta para a assistência aos mesmos.

De modo mais especifico, e correndo os riscos de fazê-lo em um espaço muito breve, este texto busca aportar alguns elementos a essa temática, desvelando aspectos preocupantes na formação em saúde e que operam como obstáculos à construção de modelos congruentes com a complexidade dos fenômenos que acometem os profissionais de forma crescente ao tempo em que os desafiam em sua prática, sem que, em muitos casos se sintam instrumentalizados para essa atenção especifica.

Dada sua amplitude, o tema permite diferentes recortes ou aproximações e lança dúvidas sobre qual deles privilegiar. Ante diferentes alternativas, escolhemos, o risco de trazer aqui impressões inacabadas, algumas notas para um debate, ainda em construção que gostaria de compartilhar por acreditarmos que tocam em pontos cujo papel é decisivo já que, em boa parte, tais dimensões dão o tom do que se faz no sistema e nas práticas cotidianas nos programas e serviços de saúde.

Contudo, ao focalizarmos a educação médica, reconhecemos seu evidente entrelaçamento com os vários momentos e espaços do processo educativo, anteriores à formação universitária, não residindo nesta escolha nenhum outro motivo que não a modulação com nossa práxis como professora em várias escolas médicas e de saúde pública no Brasil. Nesse sentido, o convidamos a percorrerem conosco um itinerário que procurará apontar, em linhas muito gerais, os contornos da área da saúde, como espaço de formação; refletir sobre humanização, integralidade e subjetividade na construção do conhecimento e na formação em saúde, de modo a subsidiar com algumas proposições uma revisão do atual modelo formador. Tal exercício, no sentido da incorporação de elementos que possam ampliar os fundamentos em que se embasam as práticas em saúde, em particular, aquelas voltadas ao manejo de quadros como TCA, que resistem às limitações da assistência fundada no modelo biomédico.



Acerca da área da saúde e de seus profissionais

Por sua natureza, a saúde consiste em um objeto complexo. Dado seu caráter histórico, um domínio em permanente construção, assumindo diferentes configurações e abordagens. Esse campo vem marcado por muitos movimentos, tensões entre paradigmas e antagonismos (concernentes aos conceitos de homem, corpo, saúde e de doença) expressando-se em distintas modalidades de ação no setor –e uma expressiva dispersão conceitual que derivam desse caráter dinâmico como espaço de produção de conhecimento e de práticas.

Saúde, como objeto de conhecimento e intervenção, implica interdisciplinaridade e diálogo entre distintas áreas de conhecimento, uma vez que as ações de saúde a aproximam de outros setores, exigindo, para a sua operacionalização o apoio de equipes multiprofissionais. Isso explica a convivência de diferentes especialidades nos grupos que hoje corporificam essa área. No plano epistemológico, demanda aportes de campos disciplinares e temáticos muito distintos que abrangem desde disciplinas como matemática, estatística e biologia até as ciências humanas, devendo agregar assim um leque de saberes que se amplia crescentemente com o movimento das especializações.

O arcabouço das ciências humanas e sociais, ainda incipiente ou praticamente ausente na formação médica, quando se analisa, por exemplo, a incorporação das ciências humanas sob um enfoque da subjetividade, possibilitaria explorar tanto determinações mais gerais (macro estruturais) quanto algumas mediações presentes no plano micro das relações estabelecidas no cotidiano e suas expressões simbólicas, ambas, como se sabe, fundamentais à compreensão do processo saúde-doença, tendo o humano incorporado no modelo.

Claro está o tensionamento político-ideológico e teórico-conceitual interno ao campo de certa forma ilustrando o que Mafesolli –embora em outro contexto– nomeia tribalização36 fragmentando em demasia os saberes e práticas. Ao que parece, prepondera a multidisciplinaridade, e a hiperespecialização, nos termos em que define Morin,37 em lugar de uma inter ou transdisciplinaridade.

Tal condição se deve, sobretudo, ao processo de profissionalização conforme vem se desenvolvendo, no Brasil, a exemplo de muitos outros países, desde o início do século passado. Concebida como fruto da divisão social e técnica do trabalho e, fundamentalmente, se constituindo como traço das sociedades industrializadas, e em setores modernos de outras, a profissionalização se fundamenta na busca de status profissional, status este garantido, sobretudo, mediante forte disputa pelo monopólio de certas competências, tendo como alicerce o saber, garantia de espaço no mercado.38 Tal processo, conflita claramente com a ideia de interdisciplinaridade.

Embora insuficientemente examinada no contexto brasileiro, analisar como essa economia se desdobra parece-me central para a compreensão dos limites –a um só tempo epistemológico e político– que se colocam ao alcance de práticas integrais, éticas e humanizadas, necessárias à formação em saúde e à complexidade exigida na abordagem de quadros que acometem os profissionais de saúde e desafiam o modelo biomédico, como os TCA e outras anomalias vinculadas ao corpo e à beleza. Isto porque tais práticas exigem, além de rupturas epistemológicas profundas com as noções de corpo, homem e natureza que sustentam a biomedicina, novas disposições de poder no âmbito do trabalho e diálogos interdisciplinares. Contudo, no campo da saúde, como talvez em nenhum outro espaço, tais objetivos conflitam com uma hierarquia paraprofissional típica deste campo39 que se sustenta, conforme já dito, na divisão social e técnica, onde ganham relevo, categorias analíticas como gênero, classe, etnia. Aqui indagamos: o campo demanda outras relações? Se sim, as atuais estratégias de formação dão conta dos desafios do campo?
Conforme já aludido, após mais de duas décadas atuando em diferentes cursos de graduação, notadamente em escolas médicas, estamos convencida de que precisamos de outro modelo. Na impossibilidade de aprofundar aqui essa afirmação abordando as questões acima assinaladas percorreremos, tão somente, alguns elementos que, a nosso ver, desvelam aspectos relativos à dinâmica profissional no contraste com um segundo plano de análise, confrontando o campo da saúde/medicina enquanto espaço de formação e produção de conhecimento ante os desafios que se colocam para o desenvolvimento da política setorial, com reflexos na prática médica.



Humanização, integralidade e subjetividade no âmbito da formação em saúde 

Várias foram as mudanças econômico-políticas que se deram, especialmente no início dos anos de 1980, determinando o esgotamento do modelo médico-assistencial privatista –se não na prática, ao menos como resposta adequada ás necessidades de saúde da população– e sua substituição por um outro modelo de atenção à saúde, sustentando por um novo ideário. Na impossibilidade de examinar o ideário a que me refiro, focalizaremos aqueles princípios que, nos termos de Alves40 confrontam mais diretamente o processo de construção do conhecimento ou as racionalidades hegemônicas no sistema: refiro-me à integralidade e humanização.

No plano da produção do conhecimento, o cenário favorável advindo do movimento da reforma sanitária brasileira e da proposta de um novo sistema de saúde, a que já fizemos alusão, o discurso científico sobre a integralidade tem experimentado, nos últimos anos, uma fase bastante fértil, expressa pela diversificação, riqueza e inovação presente nos trabalhos.

Inserindo-se nessa discussão, Mattos41 aponta que a integralidade pode ser concebida como princípio orientador das práticas, ou orientador da organização do trabalho, ou ainda orientador da organização das políticas. Acima de tudo, integralidade implica recusa ao reducionismo e à objetivação dos sujeitos e uma afirmação de abertura para o diálogo. Tal concepção toca diretamente questões referentes à subjetividade e à humanização no âmbito da educação médica ( e em saúde), já que implica em: capacidade para responder ao sofrimento manifesto, o que depende tanto da postura dos profissionais, como da organização dos serviços; postura não reducionista frente às necessidades de ações e serviços de saúde apresentada pelos sujeitos; capacidade de apreensão ampliada das necessidades em saúde, no contexto de cada encontro, por meio do olhar atento; reconhecimento e defesa da intersubjetividade inerente às práticas em saúde, que fundamentalmente envolvem uma dimensão dialógica ou de negociação, entre profissionais e usuários, quanto à definição dos projetos terapêuticos.

Mudanças na prática sanitária vigente só serão possíveis se incluirmos na pauta a concepção de saúde dos profissionais que atuam nesse sistema e a instrumentalização teórico-prática necessária para que esses profissionais possam desenvolver ações sanitárias consoante um novo ideário que evidencia o papel do conhecimento e dos processos educativos, lembrando que cuidar de alguém transcende o âmbito técnico42 do atendimento.

Pinheiro e Guizardi43 também ultrapassam a fronteira reducionista ao apreenderem o cuidado como: “... uma ação integral, (produtora de) significados e sentidos". Visualiza-se, portanto, uma clara interface com outro princípio –o da humanização que também demarcamos para reflexão, uma vez que fala-se hoje, em humanização como se houvesse um único e claro significado. Mas o que significa humanização? A quem compete essa demarcação? Aos técnicos, ao Estado, aos usuários? Trata-se de um objeto que demanda produção de conhecimento e diálogo, o que impõe respeito à alteridade. Humano se refere ao plano das relações intersubjetivas que se processam nas práticas sociais, aqui referidas ao campo da saúde, nas quais se inclui a produção do conhecimento. Portanto, não há humanização sem a inserção da subjetividade. O humano se constitui em relação e não existe fora desta intersubjetividade, mediada pelo diálogo. Sem nos darmos conta dessa busca e da centralidade do diálogo, não chegaremos nunca à integralidade, tampouco construiremos, na prática, a humanização.

Desta forma, no momento em que emerge o discurso da qualidade, da humanização, convivemos com alguns paradoxos: para citar um exemplo, o mero palavreado e o trânsito frenético de mensagens na Web, sustentado por e sustentáculo de uma cultura das sensações, grosso modo é confundido com diálogo quando na verdade o esfacela criando um simulacro. Quantos de nós não vivenciamos isto em um atendimento? Quem não experienciou isso em seu processo de formação quando a escuta do educando é neutralizada pela rigidez do modelo formador? Que implicações terão esses fenômenos na construção do conhecimento voltado para o manejo e a prevenção de transtornos na esfera simbólica (portanto da linguagem)?
Ao focalizar estas dimensões no contexto da formação voltada para o manejo de doenças simbólicas como os TCA e distúrbios ligados à autopercepção da imagem corporal, é imprescindível examinar os atores que entram neste cenário e o processo em que se dá a construção do conhecimento, do qual derivam enunciados que orientam as ações em saúde e a prática médica.

Claro está que, ao se falar em construção de conhecimento, na medicina, na saúde, ou em qualquer outro campo, há que se reconhecer, logo de início, que seria demasiado idealista uma leitura que situasse a produção do conhecimento para além dos atores que a protagonizam. Ao contrário, este processo se desenvolve por meio de ações específicas, apoiadas em uma materialidade. A este conjunto de relações chamaremos campo científico –termo tomado por empréstimo de Bourdieu44 e que, consoante este autor, se refere à arena ou campo de forças na qual se desenvolvem relações voltadas à reprodução do capital científico. Assim, em análises e revisões do atual modelo formador importa examinar as interfaces com o modo de produção do conhecimento científico –o campo científico e suas regras, sob a égide atual do produtivismo45,46– e suas consequências sobre o curso dos saberes e das práticas. Ao lado disso, cabe refletir sobre as condições de possibilidade da construção da interdisciplinaridade, da humanização, dentre outros projetos, tão propalados e, no nosso entendimento, tão pouco exercitados, não só na saúde mas nas diferentes áreas do conhecimento.

Morin37 assevera que, em lugar de saberes acumulados, empilhados, sem ligação uns com os outros, a formação deve desenvolver uma aptidão geral para identificar e trabalhar os problemas e dispor de princípios organizadores que possibilitem religar os saberes e lhes dar sentido. Esta é para Montaigne a primeira finalidade do ensino, evitando uma acumulação estéril que se perde com o tempo.

Achamos importante recuperar aqui esta ideia já que, no lugar de docente em uma escola médica brasileira, preocupa-nos os rumos que vêm tomando a educação, sobretudo porque estamos convicta de que isto não se resolve com mudanças ou inovações curriculares sem envolvimento do que Morin denomina fervor educativo que implica em abertura para o diálogo, incentivo à interrogação e à duvida, tratando-se de estimulá-la mesmo quando se encontra adormecida. E não o contrário.



Conclusão

O presente artigo resgata a elevada e crescente prevalência de comportamentos de risco para TCA e de insatisfação com a imagem corporal entre estudantes da área da saúde e, em particular, de medicina, como fenômeno que sinaliza a necessidade de reflexão sobre a gênese desse fenômeno e seus desfechos. Muitos estudos são ainda necessários para compreender estas e outras manifestações, possibilitando o entendimento de sua etiologia e o desenvolvimento de ações para minimizar o sofrimento ligado aos mesmos.

Assim, o atual modelo formador das escolas médicas, com sua concepção de homem, corpo e natureza alinhada aos cânones da biomedicina, que acentua a dimensão biológica em detrimento da social e simbólica, opera uma exclusão preocupante da subjetividade, inclusive a do educando. Noutras palavras, a formação universitária em medicina parece não estar contribuindo para que os futuros profissionais de saúde sequer discriminem e se protejam do risco de desenvolver TCA cujos diagnósticos, de outra parte, serão de sua competência futura. Em síntese, a formação destes profissionais precisa ser revista levando-se em conta que estes podem ser, muitas vezes, portadores invisíveis, que necessitam de espaços de reflexão e discussão aprofundadas sobre o cenário em que atuarão, no qual predominam valores relacionados à estética em detrimento daqueles relacionados à saúde, dos quais eles próprios são reféns.
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