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Introdução
A idéia do trabalho seguiu-se a uma apresentação de estudo ocorrida nos EUA, por ocasião de encontro de terapia intensiva pediátrica no estado de Utah, em 1992, quando o Dr. JM Dean mostrou como morriam as crianças de sua UTIP naquela localidade. O estudo foi publicado no ano seguinte no Critical Care Medicine, sob o título "Modes of death in the pediatric intensive care unit: withdrawal and limitation of supportive care".1 A primeira pergunta que nos intrigou foi: Como, modos de morteTodos morrem de insuficiência de um ou vários sistemas orgânicos. Mas não era simplesmente causa de morte. Era o modo como os pacientes, pela "intervenção" ou pela "omissão" da equipe da UTI morriam ou eram deixados morrer. Para mim, era um novo enfoque da morte que ocorria na UTI. Caíam por terra conceitos mais ortodoxos aprendidos no curso médico de preservação da vida a qualquer custo. Em 1993, quando se iniciava a publicação da Revista de Bioética, fomos convidados a escrever sobre o paciente terminal de UTI.2 Buscávamos fontes de informação na literatura, sendo a maioria delas em periódicos norte-americanos. Não havia quase publicações sobre o tema no Brasil. Percebíamos que as diferenças culturais, as influências religiosas e as incertezas de ordem legal dificultavam a abordagem do assunto sobre limitações terapêuticas no nosso meio, e possivelmente em toda a América Latina.Mas a questão era: a dificuldade de abordagem ou de relato no enfoque da limitação terapêutica em pacientes com pouca ou nenhuma chance de sobrevivência nas UTIs ocorreria na prática do dia-a-dia das unidades no Brasil
O desafio
Propusemos a realização de estudo retrospectivo na UTI Pediátrica onde desenvolvemos a nossa atividade docente-assistencial, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), uma vez que entendíamos ser de boa qualidade o registro em prontuários na mesma. Pensamos fazê-lo primeiramente com o desenho retrospectivo, até porque a chance de viés de aferição com um desenho prospectivo seria muito grande.O projeto foi enviado para o Comitê de Ética e Pesquisa do HCPA com o título "Estudo retrospectivo sobre o modo de morrer de pacientes internados na UTIP do HCPA". Aquele comitê propôs a mudança para "modo de morte", sugerindo que a proposta seria mais comprensível. Respondemos, firmando posição em manter "modo de morrer", pois atenderia melhor a um dos objetivos do trabalho; que era "identificar o tipo de atendimento recebido pelos pacientes durante a morte na UTIP".A proposta do estudo era a de revisar os prontuários de pacientes que tivéssem morrido na UTIP no período de um ano, quando teríamos entre 50 e 60 pacientes. Nossa taxa de internação anual era de aproximadamente 450 pacientes e a taxa de mortalidade ficava em torno de 12%. Na realidade, em função dos óbitos ocorridos nas primeiras 24 horas de admissão e das exclusões por falta de informações, a nossa amostra ficou reduzida a 44 pacientes.Elaboramos um instrumento de registro de dados e utilizamos uma classificação de modos de morrer que havia sido utilizada no estudo original de Vernon e cols. e de outros estudos da literatura.1,3-6 Então, testamos o instrumento de registro para avaliar o grau de dificuldade no levantamento dos dados necessários para a pesquisa.Na avaliação do instrumento de registro de dados já observávamos que o registro das particularidades da morte de muitos pacientes não era claro. Tivemos que pesquisar dados de evolução, de prescrição e de registro de enfermagem, para juntos montar o cenário dos últimos dias ou horas dos pacientes que morreram na UTIP. Assim, por exemplo, na evolução de um determinado paciente estava registrado "paciente sofreu parada cardiorrespiratória na hora tal, tendo sido constatado o óbito"; na prescrição não aparecia registro de medicações usuais da ressuscitação cardiorrespiratória; no registro de enfermagem aparecia apenas o horário do óbito. A conclusão dos autores era a de que a equipe tinha uma orientação, não explícita ou registrada em prontuário, de não ressuscitação do paciente em caso de parada cardiorrespiratória.Inclusive, os resultados preliminares do estudo foram divulgados na página eletrônica do Núcleo Interinstitucional de Bioética do HCPA (www.ufrgs.br/HCPA/gppg/bioetica.htm), no ano de 1998.7 Nessa publicação eletrônica, os autores discriminavam os modos de "não adoção" e de "retirada de medidas de suporte de vida" pesquisados no trabalho, ainda que não se detectasse com exatidão diferenças nessas tomadas de decisão por parte da equipe da UTIP, e o número de pacientes era reduzido para mostrar diferenças estatísticas.Da mesma forma, os dados obtidos nos prontuários não nos permitiram tirar outras conclusões em relação à discussão e à tomada de decisão da equipe quanto à limitação terapêutica: quando ocorreu, de que forma ocorreu, quem da equipe participou, qual o conhecimento da família em relação à decisão e qual a participação da família nesse processo.A realidade local
Os resultados dos modos de morrer obtidos no estudo, 41% dos pacioentes com modos de morrer sugestivos de atitudes assistenciais limitadoras, de certa forma, surpreenderam a todos nós, porque mostravam que também no nosso meio ocorre a limitação terapêutica nas UTIs, embora isso não seja tacitamente reconhecido, pelas razões já referidas anteriormente. Começamos a nos perguntar se essa prática, apesar de ser éticamente sustentável, estaria sendo éticamente adotada. Se toda a equipe estaria participando do processo de tomada de decisão (consenso). Se a família também estaria tomando conhecimento desse processo (revelação).Após redação do trabalho, ao qual demos o título "Identificando restrições nos cuidados intensivos em crianças sem esperança de vida", enviamos o mesmo para periódico pediátrico conceituado no meio científico brasileiro. Após avaliação dos revisores, sem restrições, houve uma manifestação do seu conselho editorial no sentido de verificar se efetivamente os autores estariam dispostos a publicá-lo e arcar com as suas consequências, por se tratar de estudo muito polêmico. Frente a tal posicionamento, resolvemos cancelar a sua publicação e discutir mais cautelosamente as eventuais implicações de sua publicação.Após exautiva discussão, entendemos que a sua não divulgação apenas manteria o status de atitudes inadequadas e unilaterais em relação à prática da limitação terapêutica, que provavelmente ocorrem em muitas UTIs do nosso país. Então, resolvemos apenas mudar o nome do estudo para "Modos de morrer na UTI Pediátrica de um hospital terciário", e optamos por publicá-lo na Revista da Associação Médica Brasileira, com maior abrangência no meio médico, e que avaliou o trabalho e publicou-o em tempo recorde (menos de 6 meses), sem objeções ou restrições.8
Mudança de atitude
Em relação à prática que o estudo revelou na nossa UTIP, fomos buscar apoio no Comitê de Bioética do HCPA, e durante mais de dois anos realizamos reuniões semanais dentro da UTIP, objetivando a discussão dos aspectos bioéticos que permeiam o atendimento dos pacientes criticamente doentes e o melhor manejo dos dilemas relacionados ao atendimento de pacientes em final de vida. Essa experiência motivou uma apresentação por ocasião do III Congresso Mundial de Terapia Intensiva Pediátrica, em Montreal (Canadá), em 2000.9Percebemos um amadurecimento muito grande da equipe nos posicionamentos bioéticos com pacientes criticamente doentes. Na prática, passamos a realizar processos de tomada de decisão para limitação terapêutica com discussão em equipe e de forma consensual. Passamos também a compartilhar com as famílias essas decisões médicas, respeitando muitas vezes a sua discordância na decisão proposta pela equipe. Da mesma forma, passamos a registrar as decisões na evolução de prontuário médico.Tais atitudes resultaram no planejamento e realização de um segundo estudo, com o mesmo desenho do anterior, que está em andamento e que está avaliando os registros de pacientes que morreram na unidade durante o ano de 2002.O crescimento da equipe e o nível das discussões sobre dilemas e conflitos na UTIP determinou também o interesse do Comitê de Bioética de participar mais proximamente das discussões de pacientes da UTIP. Hoje, alguns dos membros desse comitê participam dos rounds clínicos da UTIP, pelo menos uma vez na semana, resultando em contribuição mútua.