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VIOLÊNCIA FAMILIAR NA GESTAÇÃO ENTRE MULHERES ATENDIDAS NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, BRASIL: MAGNITUDE, CARACTERÍSTICAS E GRUPOS DE RISCO
(especial para SIIC © Derechos reservados)
Autor:
Claudia Leite Moraes,
Columnista Experto de SIIC

Institución:
Instituto de Medicina Social UERJ Rio de Janeiro, Brasil

Artículos publicados por Claudia Leite Moraes, 
Coautor Michael Eduardo Reichenheim* 
Doutor em Saúde Pública pela University of London, UL, Inglaterra. Instituto de Medicina Social da UERJ.*


Recepción del artículo: 26 de marzo, 2004
Aprobación: 0 de , 0000
Conclusión breve
As altas prevalências das diversas formas de violência familiar na gestação no Brasil indicam a necessidade de enfrentamento imediato do problema.

Resumen

Objetivos: estimar a magnitude, características e grupos de risco da violência familiar na gestação em clientela atendida na rede pública de saúde do Rio de Janeiro. O estudo focaliza tanto a violência praticada pela gestante como a pelo parceiro Método: 530 mulheres que tiveram recém-nascidos a termo entre março e outubro de 2000 foram selecionadas aleatoriamente e entrevistadas por equipe treinada utilizando-se as Revised Conflict Tactics Scales (CTS2). A análise de sub-grupos foi realizada utilizando-se o teste exato de Fisher. Resultados: 52.2% (IC95%: 47.8%-56.5%) das entrevistadas relatou ocorrência de agressão psicológica, violência física, coerção sexual ou injúrias graves entre o casal durante a gestação. Cerca de 33% (IC 95%:28.8%-37.0%), a ocorrência de algum modo de violência física e 16% (IC 95%:13.3%-19.8%) de formas graves. Dez por cento (IC95%:7.5%-12.7%) e 15 % (IC 95%:12.6%-18.9%) relatou coerção sexual e injúria, respectivamente. A violência física ocorreu principalmente entre mulheres com menor escolaridade, adolescentes, que não trabalharam fora, com baixa freqüência ao pré-natal e com pouco apoio social. Famílias com maior número de menores de cinco anos, que abusam de álcool e drogas e com baixo nível sócio-econômico também foram mais envolvidas. Conclusões: as altas prevalências das diversas formas de violência familiar na gestação no Brasil indicam a necessidade de enfrentamento imediato do problema.

Palabras clave
Violência familiar; violência contra a mulher

Clasificación en siicsalud
Artículos originales> Expertos del Mundo>
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Especialidades
Principal: Medicina FamiliarObstetricia y Ginecología
Relacionadas: Atención PrimariaEpidemiologíaMedicina LegalSalud Mental

Enviar correspondencia a:
Claudia Leite Moraes. R. Tonelero, 239/802. CEP: 22030-000. Copacabana. Rio de Janeiro. RJ. Brasil. Leite Moraes, Claudia


FAMILY VIOLENCE DURING PREGNANCY AMONG PUBLIC HEALTH CARE USERS IN RIO DE JANEIRO, BRAZIL: MAGNITUDE, CHARACTERISTICS AND RISK GROUPS

Abstract
Objective: to estimate the prevalence, characteristics and risk groups of domestic violence during pregnancy among public health care users in Rio de Janeiro. The study focuses on violence perpetrated by both women and partners. Method: 526 women giving birth at term in public maternities from March to October 2000 were randomly selected and interviewers used the Revised Conflict Tactics Scales. Results: 52.2% (95% Confidence Interval: 47.8%-56.5%) of the respondents reported severe physical, psychological or sexual violence between couple during pregnancy. 33.8% (95% CI: 28.8% – 37.0%) of the respondents reported some form of physical violence and 16.5% (95% CI: 13.3% – 19.8%) referred to severe forms. 78.3% (95% CI: 74.8% – 81.8%), 9.9% (95% CI: 7.5% – 12.7%) and 15.6% (95% CI: 12.6% –18.9%) reported psychological aggression, sexual coercion and injuries, respectively. Physical violence mainly occurred among adolescent women with less schooling, who did not work outside the home, with fewer prenatal appointments, and with little social support. Families with more under-five children, alcohol and drug abuse, and low socioeconomic status were also involved more frequently. Conclusion: high prevalence rates for various forms of domestic violence in Brazil suggest that the issue should be viewed as a major public health problem.


Key words
Family violence; violence against women; preg


VIOLÊNCIA FAMILIAR NA GESTAÇÃO ENTRE MULHERES ATENDIDAS NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, BRASIL: MAGNITUDE, CARACTERÍSTICAS E GRUPOS DE RISCO

(especial para SIIC © Derechos reservados)
Artículo completo
Introdução
A magnitude da violência doméstica na gestação é mais elevada do que muitos problemas de saúde habitualmente rastreados no pré-natal.1 Estima-se que entre 0.9% a 20% das gestações sejam palco de violência física contra mulher.2 Apesar de presente em todos os grupos sociais, pesquisas têm apontado para uma maior ocorrência em certos subgrupos populacionais. O perfil das vítimas tem sido descrito como sendo constituído, preferencialmente, de mulheres jovens, solteiras ou separadas, de baixa escolaridade, envolvidas em relações onde seja comum o abuso de álcool e drogas ilícitas, com número reduzido de consultas pré-natais, com pouco suporte social e de baixo nível sócio-econômico.3-5
As conseqüências da violência na saúde das mulheres incluem, desde dificuldades adaptativas, até a morte. Isolamento social, insegurança, depressão, distúrbios do sono, baixa auto-estima, contusões localizadas e distúrbios psicossomáticos são algumas das repercussões já descritas.6 Além dos prejuízos diretos, a literatura tem mostrado que esse cenário também não é dos mais profícuos à criação dos filhos(as).7 Alguns autores apontam que as conseqüências emocionais do testemunho da violência entre os pais na saúde das crianças podem ser até mesmo piores do que quando elas mesmas são o alvo de violência. A percepção de que vivem em famílias sem limites, conflituosas e perigosas, misturando-se à freqüente culpabilidade que carregam da violência entre os pais, são parte do cenário de desencadeamento de agravos psicoemocionais, quer de curto, médio ou longo prazos.8
As repercussões da violência na gestação ainda são pouco conhecidas. Mesmo controversa, a literatura aponta diversos problemas de saúde materno-fetais. Gestantes vitimizadas tendem a iniciar o pré-natal mais tardiamente, dificultando a identificação de comportamentos de risco, tais como, tabagismo, uso de medicamentos proscritos e drogas ilícitas. Também deixam de ser captadas patologias pregressas ou correlatas à gravidez, acarretando um possível aumento de complicações. Estudos também sugerem um aumento do risco de aborto espontâneo, baixo peso ao nascer, prematuridade e morte fetal.9-11
A ocorrência simultânea das diversas formas de violência familiar em um mesmo relacionamento vem sendo apontada como um dos principais entraves ao conhecimento dos efeitos específicos de cada uma dos tipos de vitimização. A inter-relação e superposição de agressões psicológicas, físicas e, muitas vezes, sexuais, na convivência do casal dificulta o estabelecimento de modelos causais únicos justificando o estabelecimento de políticas de prevenção e acompanhamento de vítimas que englobem os diversos aspectos do problema.12 Esta concomitância dos diferentes tipos de violência parece ocasionar repercussões mais graves que além de trazerem agravos à saúde feminina, também comprometem sua vida social e produtiva.13
No Brasil, apenas recentemente a violência doméstica vem sendo reconhecida como problema de Saúde Pública. Apesar de estatísticas anteriores sugerirem que a violência entre o casal é um problema que deve ser enfrentado,14 a específica na gravidez ainda é pouco estudada. No melhor do conhecimento dos autores, esta é a primeira pesquisa que estima a magnitude do problema durante a gestação em nosso meio.
O artigo enfoca a prevalência, a periodicidade e o grau de concomitância da violência física, agressão psicológica, coerção sexual e injúrias ao longo da gestação entre casais atendidos pela rede pública de saúde na cidade do Rio de Janeiro. Além disto, são apresentadas as principais características dos episódios de violência física e identificados os grupos mais vulneráveis à ocorrência dos eventos.
Material e métodos
A população de estudo compreende 530 mulheres que compõem o grupo controle de um estudo caso-controle em andamento no Rio de Janeiro sobre violência durante a gestação e prematuridade. A amostra foi selecionada entre março e setembro de 2000 por amostragem aleatória simples do conjunto de mulheres que tiveram recém-nascidos a termo, segundo ultra-sonografia (USG), realizada entre a 7a e a 18a semana de gestação. Na ausência de USG utilizou-se a data da última menstruação. Mulheres com diabetes, hipertensão arterial sistêmica ou que tenham dado a luz a recém-nascidos com mal-formações congênitas graves, infecções associadas a prematuridade ou gemelares foram excluídas do estudo.
A coleta de dados foi realizada por uma equipe de entrevistadoras previamente treinadas, que percorriam as maternidades diariamente para a identificação dos nascimentos ocorridos nas 24 horas anteriores. As entrevistas foram realizadas nas primeiras 48 horas de puerpério, antes da alta hospitalar, em local reservado e sem a presença do marido ou companheiro.
Para a identificação da violência entre o casal durante a gestação utilizou-se o as Revised Conflict Tactics Scales (CTS2),15 formalmente adaptadas para uso no Brasil.16,17 O instrumento é composto por 78 itens que descrevem possíveis ações do respondente e, reciprocamente, de seu companheiro abarcando táticas de resolução de conflitos através de negociação, agressão psicológica e violência física. Também contempla uma escala de injúrias decorrentes da violência e outra que aborda a existência de coerção sexual no relacionamento do casal. Considerou-se a presença de violência psicológica, física ou sexual quando pelo menos um item da respectiva escala era respondido positivamente. A variável Resumo Violência considerou todos os itens exceto os da escala de negociação. Os itens foram classificados em menores ou graves de acordo com instrumento original.
Para a apreensão do nível de suporte social utilizou-se o instrumento elaborado por Sherbourne & Stewart (1991) adaptado para o portugués.18 Como não há consenso sobre a maneira de qualificar o apoio social, o escore total da escala foi primeiramente convertido em quintil. As três categorias intermediárias foram consideradas conjuntamente já que o padrão de violência entre elas foi bastante semelhante. Para avaliação de abuso de álcool, psicotrópicos e uso de drogas ilícitas foram utilizadas versões em português dos instrumentos CAGE elaborado por Mayfield et al.19 e NSDUQ elaborado por Smart,20 respectivamente. A suspeita de abuso de álcool foi identificada quando um dos membros do casal respondeu positivamente a pelo menos dois itens do CAGE. Definiu-se como um caso positivo de uso de psicotrópicos ou drogas ilícitas quando a respondente relatou o consumo por ela ou seu companheiro de pelo menos uma das drogas investigadas ("calmantes", "cheirinho da loló", lança-perfume, "cola de sapateiro", maconha, cocaína, outras). As demais variáveis de interesse foram captadas utilizando-se questionário estruturado, elaborado especialmente para a pesquisa e estão dispostas na seção de Resultados nas tabelas 1 e 3.
As informações do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC) de 2000 foram utilizadas para avaliação da representatividade da amostra estudada vis-à-vis o conjunto de nascimentos ocorridos nos serviços públicos de saúde do Rio de Janeiro.21
Para avaliar a qualidade do processo de mensuração foram realizadas 165 replicações dos módulos de violência, pelo mesmo entrevistador 24 a 48 horas após a primeira entrevista. As altas confiabilidades encontradas para as diferentes escalas do instrumento permitiram a continuidade da investigação.17
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. A participação no estudo se deu mediante autorização livre e esclarecida. Garantiu-se o caráter confidencial das informações. Todas as mulheres receberam orientação sobre os locais de atendimento às famílias vítimas de violência situados no Rio de Janeiro e foram incentivadas a procurarem auxílio, caso julgassem necessário.
Resultados
A população de estudo se caracteriza por um alto contingente de mulheres com nível elementar de escolaridade, adolescentes, solteiras ou separadas, sem trabalho remunerado, com baixa freqüência ao pré-natal, mães de primogênitos(as), submetidas ao parto normal e vivendo sob precárias condições ambientais (tabela 1). De modo geral, a amostra se assemelha ao conjunto de mães que tiveram seus bebês em maternidades públicas do município do Rio de Janeiro. Porém, nota-se que é composta por maior número de mães de primeiro filho, mais jovens e com menor número de consultas pré-natais.
Tabela 1Na tabela 2 são apresentadas as prevalências dos diferentes tipos de violência entre o casal. Chama atenção a grande parcela de mulheres que conviveram com algum tipo de violência em seus lares durante a gravidez. Mais da metade das entrevistadas relatou a participação em situações graves de agressão psicológica, violência física, coerção sexual ou injúrias ao longo da gestação. Extrapolando os achados, estima-se que cerca de 58 000 mulheres atendidas nas maternidades públicas do Rio de Janeiro convivam com algum tipo de violência e que, dentre estas, 38 000 participem de situações graves.Tabela 2Cerca de 80% das mulheres refere algum tipo de agressão psicológica, um terço relata a ocorrência de algum tipo de violência física entre o casal e 15% refere ter participado ativamente de situações de maior gravidade. Tanto as ações de agressão psicológica, como as que reportam atos de violência física foram mais utilizadas pelas mulheres do que por seu companheiro.
Dez por cento das respondentes refere algum tipo de coerção sexual, a maioria de caráter menor. Diferente das formas de violência anteriores, esta é uma prática mais freqüente quando os homens são os perpetradores – cerca de duas vezes mais. Avaliando-se apenas os itens que reportam atos de coerção sexual graves, o diferencial aumenta para nove.
Com relação às injúrias, aproximadamente 15% das entrevistadas refere ter havido algum tipo de dano físico em pelo menos um dos membros do casal. Aqui também chama atenção o diferencial entre homens e mulheres. Ao se apreciar as conseqüências graves, nota-se que, apesar da prevalência de violência física perpetrada pela mulher ser mais elevada, são estas que apresentam injúrias com mais freqüência.
Dentre os atos de violência menor, os mais comumente utilizados foram "dar um empurrão" e "segurar com força". Oitenta e sete por cento das famílias que perpetraram violência física (correspondendo a 29% das entrevistadas) utilizou a primeira estratégia, enquanto que 73% (24% do total), utilizou a segunda. Dentre os atos de violência física grave, os mais usados foram "dar um murro ou bater com alguma coisa que pudesse machucar" (33%) e "chutar" (28%). Estes eventos correspondem, respectivamente, a 10% e 11% quando se considera o conjunto de mulheres entrevistadas. Apesar de menos freqüente, chama atenção o fato de 10% das que afirmaram a ocorrência de violência física (c. 1% do total) ter relatado o uso de faca ou arma por algum membro do casal em desentendimentos ao longo a gestação.
Ao se avaliar o número de episódios de agressão psicológica e violência física entre o casal, percebe-se que a grande maioria das mulheres entrevistadas participou regularmente de situações de conflito. Cerca de 80% das que relataram a ocorrência de episódios de agressão psicológica afirmaram ter sido alvo de insultos, xingamentos, depreciações e ameaças várias vezes durante a gestação. Ao se considerar aquelas que vivenciaram situações de violência física, observa-se que a regularidade dos atos violentos também se faz presente já que cerca de 70% das mulheres relatou a repetição dos eventos de menor e maior gravidade ao longo da gravidez. Quando se aprecia a freqüência de atos graves de violência física considerando os diferentes padrões de ocorrência de atos mais leves, nota-se que a chance de situações de maior gravidade é cerca de sete vezes maior entre mulheres que relatam atos repetidos de violência menor quando comparadas àquelas que referem apenas episódio isolado durante a gestação (p = 0.001).
Ao se avaliar a simultaneidade das diferentes formas de violência entre o casal percebe-se um padrão heterogêneo. Enquanto que 72% das mulheres vítimas de agressões psicológicas não vivenciaram outras formas de violência em seus lares, apenas 4% das vítimas de violência física foram exclusivamente agredidas fisicamente. A maior parte das mulheres que sofreram esta forma de violência também foi vítima de agressões psicológicas (96%) e cerca de 20% sofreu algum tipo de coerção sexual. Já ao se considerar as mulheres que foram vítimas de coerção sexual, observa-se que cerca de 50% sofreram as três formas de violência durante a gestação. Apenas 15% delas foi vítima exclusiva deste modo de violência, enquanto que 35% foram vítima tanto de coerção sexual, como de agressões psicológicas (figura 1).



A tabela 3 descreve a prevalência de violência física nos diferentes subgrupos. Nota-se que esta ocorre principalmente entre as mulheres com menor escolaridade, adolescentes, que não trabalharam fora de casa durante a gestação, com reduzido número de consultas pré-natais e com baixo nível de apoio social. As famílias que apresentam três ou mais crianças menores de cinco anos, onde é comum o uso de álcool e drogas e com baixo nível sócio-econômico também estão mais freqüentemente envolvidas.
Tabela 3Discussão
Em diferentes países a violência doméstica vem sendo tratada como um importante problema de saúde pública, levando à implementação de estratégias variadas para sua prevenção e controle. A importância do tema nos debates e discussões de especialistas e da sociedade em geral se deve, pelo menos em parte, à magnitude do problema e às sérias repercussões na saúde de suas vítimas.
Como já abordado na introdução, estudos anteriores estimam que até um quinto das gestações sejam palco de violência física. Nesta pesquisa observou-se uma proporção maior de famílias convivendo com o problema ao se analisar conjuntamente a prática da violência pela gestante e seu companheiro. Cerca de 34% das mães referem ter participado de atos de violência física e 17% considerados graves. Mesmo focalizando somente as situações onde a gestante foi vítima, observa-se que as prevalências pontuais estimadas para o conjunto de atos violentos que envolveram agressão física se aproximam do limite superior às relatadas por outros autores.
Além das questões inerentes às características da população estudada, é possível postular que alguns aspectos metodológicos da investigação possam ter facilitado a identificação da violência, contribuindo para que as estimativas ultrapassassem às descritas na literatura. Dentre estes, destacam-se os que envolvem o processo de coleta das informações. A equipe de campo envolveu apenas profissionais do sexo feminino, sensíveis ao tema e extensivamente treinadas, facilitando assim, a entrevista. Esta estratégia é diferente da maioria dos estudos que utiliza profissionais dos serviços, de ambos os sexos e sem treinamento específico. A opção por entrevistas individuais, sem a presença do companheiro e em local reservado, também pode ter facilitado a revelação de muitas situações de violência que em outras circunstâncias poderiam ser camufladas.6
O instrumento de aferição utilizado para identificação da violência entre o casal também pode ter tido papel importante na qualidade do processo de aferição. A CTS2 faz parte de um conjunto de instrumentos já validados em diferentes contextos de pesquisa. Sua excelência vem sendo ressaltada por diferentes pesquisadores da área, que as tem utilizado, sistematicamente, como referência para avaliação da validade concorrente de novos instrumentos.15
O momento da realização das entrevistas também pode estar associado às altas prevalências encontradas. A maior parte dos estudos capta as informações durante o pré-natal, restringido o período de referência àquele anterior à entrevista. Esta, quando realizada exclusivamente no início do acompanhamento, não capta as situações de violência que tenham se iniciado no decorrer da gestação nem, tampouco, as que estejam dormentes temporariamente, faceta característica do ciclo da violencia.22 Como no presente estudo as entrevistas se deram após o parto, pôde-se investigar todo o período gestacional, aumentando a chance de identificação do conjunto de situações de violência. Uma outra vantagem desta abordagem é a possibilidade de minimizar as perdas seletivas, já que boa parcela das mulheres vitimizadas não utiliza regularmente os serviços pré-natais.4
Por outro lado, deve-se ponderar que a coleta de dados a partir do reconhecimento dos nascidos vivos não capta os casos de violência na gravidez que cursaram com abortamentos, perdas fetais tardias e, até mesmo, mortes materno-fetais. Logo, é possível que os casos mais graves estejam subestimados. Para uma estimação mais acurada da magnitude da violência durante a gestação, o ideal seria unir as duas estratégias, realizando um rastreamento em diferentes momentos do pré-natal e abordando a mãe logo após o nascimento do bebê, como sugerido por outros autores.23,24
Além das questões relacionadas à coleta de informações, é possível que as magnitudes encontradas possam estar relacionadas ao perfil da população estudada que apresenta um grande contingente de adolescentes, com baixa escolaridade e situação sócio-econômica precária. Como descrito na introdução, apesar da violência doméstica não se restringir a nenhum grupo social, estas características fazem parte de um conjunto de fatores sócio-demográficos regularmente associado a uma maior ocorrência do problema.
A baixa prevalência de coerção sexual encontrada também merece reflexão e debate. Diferentemente das outras formas da violência, é possível que esta esteja subestimada. No Brasil, as questões ligadas à sexualidade ainda são um tabu, o que pode ter dificultado a revelação do problema. O constrangimento que o tema traz pode ter sido responsável por uma negativa sistemática visando uma rápida finalização da entrevista. Além disto, Moraes et al.,16,17 em artigos anteriores sobre a adaptação trans-cultural da CTS2, identificam alguns itens problemáticos na escala de coerção sexual que talvez possam ter prejudicado sua identificação.
Chamam atenção as maiores prevalências de agressão psicológica e violência física perpetradas por mulheres com relação às praticadas por seus companheiros. Ainda que as diferenças entre gêneros não tenham sido tão marcantes, inquéritos populacionais norte-americanos realizados nas três últimas décadas também reportaram estes achados.12 O papel simultâneo das mulheres como perpetradoras e vítimas serviu de sustentação à perspectiva que compreende a violência entre o casal como parte integrante da violência doméstica, contrapondo-se a uma abordagem feminista que a descreve apenas enquanto uma questão de gênero.22
Além de considerar as agressões femininas como uma forma de autodefesa frente aos constantes desrespeitos e violências masculinos, pode-se aventar que a freqüente utilização destas estratégias por mulheres brasileiras também possa estar relacionada à características culturais. De forma geral, mulheres de origem afro-latinas são mais explosivas e permissivas com relação aos contatos corporais - sejam estes violentos ou afetuosos - do que as de origem norte-européia. É possível que estas características facilitem a ocorrência de atos de agressão física em situações de conflito e desavenças quando associadas a outros fatores de risco. Por outro lado, pode-se imaginar que o diferencial encontrado se deva a uma subestimação da violência masculina. Cabe postular que as mulheres entrevistadas tenham camuflado atos de violência sofridos para "proteger" seus companheiros de represálias. Além disto, uma negação poderia se dar pelo medo de retaliações e de mais violências com a revelação, já que boa parcela das mulheres entrevistadas tinha relacionamentos "estáveis" e teria que retornar aos seus lares após a alta hospitalar. Para melhor compreensão deste diferencial seria interessante a realização de estudos qualitativos que incorporassem a escuta de homens e mulheres em diversos contextos e situações de pesquisa.
De todo modo, deve-se enfatizar que, a despeito da utilização de violência física ser mais freqüente entre mulheres, são as agressões masculinas que provocam o maior número de vítimas com repercussões orgânicas. Este achado vem sendo ressaltado por diferentes autores.6,25 Possivelmente, são estas situações de violência grave que, se não interrompidas, podem levar a conseqüências extremas, inclusive à morte.
A gravidade da situação também é revelada pelo número de mulheres que reportam o uso de faca ou arma durante os desentendimentos. Dez por cento das famílias que convivem com a violência física estão em uma situação de alto risco para a ocorrência de lesões graves e letais, indicando a necessidade de intervenção imediata. Este fato reforça a importância da identificação precoce da violência durante a gestação e a necessidade de ampliação da oferta de serviços de proteção às vítimas de violência, tão escassos no Brasil. Deve-se destacar que as situações mais graves são muito mais freqüentes entre as mulheres que convivem continuamente com atos violentos mais brandos em seu dia-a-dia do que entre as que referem episódios isolados. Desta forma, vale a pena considerar a presença de situações crônicas de menor gravidade como um possível evento sentinela de situações mais graves. Os profissionais de saúde devem estar alerta quando estiverem diante de mulheres que relatem um padrão repetitivo de atos mais brandos. Estas revelações podem estar camuflando situações graves que envolvam risco de vida, necessitando de ações imediatas de proteção e prevenção de abusos futuros.
As altas prevalências, a concomitância e a regularidade dos diferentes tipos de violência doméstica durante a gestação, por si só, já indicam que a questão deva ser entendida como um importante problema de saúde pública no município do Rio de Janeiro ou, quiçá, no conjunto de centros urbanos brasileiros, merecendo ser prontamente enfrentada. Soma-se a isto a complexidade e variedade das conseqüências do problema em todos os integrantes da família. Deve-se tomar como exemplo o que vem acontecendo em vários países onde diferentes instituições já recomendam a implantação de estratégias voltadas para a detecção precoce da violência doméstica durante o acompanhamento pré-natal.24-26 É necessário não desperdiçar esta excelente oportunidade. A regularidade do atendimento permite o aprofundamento das relações entre profissionais de saúde e gestantes facilitando a identificação da violência. É o momento oportuno para romper o ciclo. Identificar precocemente e elaborar estratégias para diminuição da violência atual e prevenção de novos episódios são etapas a serem almejadas.2,3,23,24
Em consonância com a literatura, este estudo identificou que as mulheres que vivenciaram situações de violência durante a gestação são preferencialmente jovens, solteiras, com baixa escolaridade, envolvidas em relações em que o abuso de álcool e outras drogas são comuns, sem companheiro fixo, com baixo nível de suporte social e com número reduzido de consultas pré-natais. Ainda assim, vale ressaltar que apesar da magnitude do problema ser maior em certos subgrupos populacionais, qualquer estratégia a ser implementada deve partir de um rastreamento amplo nos serviços de atenção à gestante. O conhecimento sobre o perfil das famílias deve ser utilizado apenas como um norteador para priorização de clientela em situações de carência de recursos. Muitos casos de violência ocorrem em famílias que fogem ao padrão estabelecido na literatura. Um olhar estreito dificulta a identificação destas situações.
No planejamento de ações no âmbito dos serviços não se deve deixar de lado a constatação do atual despreparo da maioria dos profissionais de saúde para lidar com o problema. Para uma maior efetividade de estratégias de prevenção e controle seria fundamental a inclusão do tema no currículo de graduação e aperfeiçoamento da equipe de saúde em geral e, principalmente, no treinamento daqueles que vão trabalhar no atendimento pré-natal. O incentivo à capacitação de pessoal e a montagem de equipes multiprofissionais de referência que trabalhem em rede integrada às demais instituições de proteção à mulher e à criança são pilares básicos para a efetividade das ações. A detecção e intervenção precoces são as únicas formas de romper com os ciclos que envolvem privação afetiva, abuso, isolamento, depressão, dificuldade para desempenhar a "maternagem" e abuso da criança, propiciando uma melhoria da saúde da mulher e de sua família.
Los autores no manifiestan conflictos.
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