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Introdução
O sistema ABO, o mais importante sistema de antígenos eritrocitários humano, ainda é amplamente utilizado como um importante marcador genético nos estudos de associações com doenças infecciosas e não infecciosas.1,2 Embora esteja intimamente relacionado ao sistema Lewis e ao status secretor dos antígenos ABH em seus aspectos genéticos e bioquímicos,3 esses dois últimos marcadores têm recebido menor atenção nestes tipos de estudos. Mesmo assim, os primeiros estudos epidemiológicos que estabeleceram associação entre grupos sangüíneos e doenças, mostraram alta freqüência do grupo O e do status não secretor dos antígenos ABH entre pacientes com úlceras pépticas.4,5
As freqüências dos grupos sangüíneos ABO, Lewis e do status secretor estão bem estabelecidas nas diferentes populações e há muitos relatos demonstrando uma grande variabilidade racial em seus polimorfismos.6 Além disso, o uso de diferentes métodos moleculares tem revelado que o polimorfismo genotípico e gênico desses sistemas é altamente elevado.7-9 Embora a presença ou ausência de alguns dos antígenos ABH-Lewis possa estar associada a doenças, a completa ausência dessas moléculas não resulta, necessariamente, em condições patológicas. Esses aspectos tornaram esses sistemas atrativos para diferentes áreas de pesquisa, além daquelas de importância médica.
Com a constatação de que o bacilo Helicobacter pylori é o agente causal da ulcera péptica,10,11 vários estudos realizados nos últimos anos procuraram estabelecer associações entre os grupos sanguíneos ABO, Lewis e o status secretor com a presença desse bacilo, no sentido de definir um perfil genético que possa ser explorado como marcador de suscetibilidade tanto para infecção com para as doenças a ele relacionadas. A importância epidemiológica que tem sido atribuída a esse microrganismo em função de sua habilidade em infectar os seres humanos nas diferentes faixas etárias em todas as populações,12,13 de sua implicação na etiologia de varias doenças gastroduodenais 14 e de seu possível potencial carcinogênico, 13,14 parecem ser fatores que despertam o interesse para esse tipo de investigação.
Antígenos ABH, Lewis na aderência do Helicobacter pylori
Na década passada foi proposto, com base em observações experimentais, que o antígeno Lewis b (Leb) atua como receptor para o H. pylori.15 Essa molécula difucosilada, expressa em grande quantidade na superfície das células epiteliais da mucosa gástrica dos indivíduos do grupo O e secretores positivos, parece ser o alvo para as adesinas expressas por esse microrganismo.16
Esta proposição procurou dar fundamentação para os resultados observados no passado de que o grupo O é mais suscetível às ulceras pépticas, tendo por base que a modificação do antígeno H tipo I (Fucα1→2Galβ1→3GlcNAcβ1→R) pela adição dos monossacarídeos N-Acetil-galactosamina e D-galactose durante a síntese dos antígenos A e B respectivamente, reduz a disponibilidade de receptores para a aderência do H. pylori nos demais grupos sangüíneos ABO. De fato, a não modificação do antígeno H tipo I no grupo O favorece a síntese do antígeno Leb nos indivíduos secretores positivos, devido à ausência de competição das glicosiltransferases A e B com a fucosiltransferase Lewis.3
Como a presença do antígeno Leb caracteriza o status secretor positivo, a proposição de que apenas esta molécula representa o receptor para o H. pylori parece inconsistente com os dados estatísticos que mostraram maior freqüência de úlceras pépticas em pacientes do grupo O, secretores negativos.4,5
No final da última década foi demonstrado que o antígeno H tipo II (Fucα1→2Galβ1→4GlcNAcβ1→R) também atua como receptor para componentes isolados da superfície do H. pylori.17 O antígeno H tipo II se expressa em áreas profundas das mucosas gastroduodenais, provavelmente sob ação da fucosiltransferase codificada pelo lócus H, mas essa característica independe do status secretor positivo ou negativo.3 Parece portanto, que o H. pylori é bastante versátil pois utiliza diferentes moléculas expressas nas mucosas gástrica e duodenal como receptores.
Grupos sangüíneos ABO, Lewis e infecção pelo H. pylori
Os grupos sangüíneos ABO, Lewis, o status secretor e a infecção pelo H. pylori tem sido analisados em conjunto ou separadamente, tanto em indivíduos normais como em pacientes com diferentes doenças gastroduodenais.
Em um estudo realizado com doadores de sangue finlandeses de ambos os sexos, não foram observadas diferenças significantes na prevalência dos anticorpos das classes IgM, IgG e IgA, os grupos sangüíneos ABO e o status secretor.18 Resultados semelhantes foram encontrados nos estudos que avaliaram os grupos sangüíneos ABO e anticorpos IgG anti-H. pylori em doadores de sangue holandeses,19 e australianos.20
O status secretor dos antígenos ABH e a infecção pelo H. pylori foram analisados em pacientes com doenças gastroduodenais.21 Entre 101 pacientes estudados, 58% estavam infectados, mas as análises de regressão logística demonstraram que não havia associação entre os marcadores analisados e a presença desse microrganismo. Além disso, os autores concluíram que o status secretor e a presença do H. pylori são fatores de risco independentes para as doenças gastroduodenais. Outro estudo prospectivo, que também avaliou a distribuição dos grupos sangüíneos ABO em 123 pacientes infectados e 64 não infectados pelo H. pylori, encontrou maior prevalência do grupo O entre os não infectados (48.4%) comparados aos infectados (37.4%) (p > 0,05).22
A presença de anticorpos da classe IgG anti-H. pylori, dos grupos sangüíneos ABO e do status secretor foi recentemente analisada em 330 pacientes consecutivos com indicação de endoscopia digestiva, de ambos os sexos, mas apenas o status secretor positivo mostrou-se associado à infecção.23 Falta de associação entre os grupos sangüíneos ABO e a presença de infecção pelo H. pylori também foi observada em crianças e estudantes secundaristas.24
Há outros relatos epidemiológicos e experimentais e que discordam desses estudos anteriormente citados. Correlação entre o grupo O e a presença do H. pylori na mucosa antral foi demonstrada em pacientes com atrite reumatóide.25 Associação significante entre o grupo O, o fenótipo Le(a-b+) e a infecção pelo H. pylori foi verificada em pacientes com úlceras pépticas e carcinoma gástrico.26 Além disso, também foi observado que os antígenos fucosilados H, Lea e Leb, favorecem a aderência do H. pylori à mucosa gástrica e que o grupo O apresenta maior suscetibilidade a úlceras pépticas.17
Um estudo que envolveu pacientes com várias doenças gastroduodenais, mostrou associação significante entre o grupo O e a infecção pelo H. pylori.27 Os autores também observaram que 90,3% dos pacientes do grupo O com úlceras pépticas estavam infectados por cepas portadoras do gene cagA. Mais recentemente, foi avaliado o efeito da expressão dos antígenos ABO e Lewis do hospedeiro na colonização pelo H. pylori e na conseqüente resposta inflamatória em 207 pacientes submetidos a endoscopia digestiva alta.28 Foram observadas diferenças significantes na infiltração linfocitária da mucosa gástrica em pacientes do grupo O, secretores negativos, comparados aos demais grupos, também secretores negativos. Os autores demonstraram a adesão preferencial do H. pylori aos antígenos receptores Leb in vivo e concluíram que a colonização bacteriana e a resposta inflamatória resultantes podem ser influenciadas, pelo menos em parte, pela expressão dos antígenos ABH-Lewis do hospedeiro. Estas conclusões são reforçadas pelas análises experimentais que demonstraram que leucócitos de indivíduos normais do grupo O, expressam maiores níveis de citocinas pró-inflamatórias quando estimulados com extratos de H. pylori.29
Recentemente, analisamos as freqüências dos grupos sangüíneos ABO, Lewis e do status secretor em pacientes de ambos os sexos, caucasianos e não-caucasianos, de acordo com a presença ou não de infecção pelo H. pylori.30 De 120 pacientes investigados, 61.7% estavam infectados e 38.3%, não infectados. Encontramos maior prevalência do grupo O entre os pacientes infectados e do grupo A, entre os não infectados (p = 0.003), mas não observamos diferenças significantes nas freqüências dos grupos sangüíneos Lewis, do status secretor e infecção H. pylori. Nossos resultados preliminares também indicam diferenças significantes na freqüência de cepas CagA positivas em pacientes do grupo O (p = 0.04).31 Além disso, determinamos os genótipos ABO pelo método PCR-RFLP na presença e na ausência de infecção e observamos maior prevalência do alelo O1 do lócus ABO entre os pacientes infectados (p = 0.0002) (Dados não publicados).
Parte dos estudos que analisaram, isoladamente ou em conjunto, a influência dos grupos sangüíneos ABO, Lewis, do status secretor e a infecção pelo H. pylori, confirmam a maior freqüência do grupo O entre os indivíduos infectados ou com evidências de infecção e são suportados por dados experimentais. Se o grupo O pode atuar como um fator genético permissivo, o mesmo parece ser necessário mas não suficiente, pois há relatos demonstrando que indivíduos aparentemente normais e pacientes que pertencem aos grupos A, B e AB também se infectam e alguns desenvolvem doenças relacionadas a esse microrganismo. Portanto, persistem as controvérsias resultantes das discordâncias entre as observações clínicas e laboratoriais.
As discordâncias entre os estudos que investigaram grupos sangüíneos ABO, Lewis, o status secretor a infecção pelo H. pylori podem ter sido influenciadas por diferentes fatores, dentre os quais a não uniformidade na escolha dos marcadores. Alguns analisaram os grupos sangüíneos ABO, Lewis e o status secretor em conjunto, enquanto outros, negligenciaram os dois últimos. Uns relataram apenas evidências de infecção baseando-se na presença de anticorpos e outros não diferenciaram infecção de doença. Os métodos utilizados na investigação do H. pylori foram variados e os grupos-controle nem sempre estavam adequadamente pareados.
Considerações finais
O tema apresentado neste texto ainda permanece aberto a novas pesquisas e parece fundamental que as novas investigações avaliem tanto as características que determinam a suscetibilidade do hospedeiro bem como as de virulência do H. pylori. Os futuros estudos envolvendo os grupos sangüíneos ABO, Lewis, o status secretor e a presença do H. pylori precisam considerar que a expressão dos antígenos ABH-Lewis não esta restrita aos eritrócitos, mas também ocorre, de forma integrada, em outros tecidos e secreções, e portanto, todos esses sistemas devem ser analisados em conjunto.
Como a ação integrada desses sistemas confere ao trato gastrointestinal de cada indivíduo um perfil polimórfico que pode ser diferenciado daquele observado nos eritrócitos,32 é oportuno lembrar que outros aspectos relacionados à expressão dos glicoconjugados ABH-Lewis, especialmente os genótipos Lewis e Secretor, devem ser considerados. A variabilidade dos alelos que codificam as glicosiltransferases dos loci ABO, Lewis (FUT III), Secretor (FUT II) e H (FUT I) pode alterar a competição dessas enzimas pelos oligossacarídeos precursores, e criar perfis diferenciados de glicoconjugados nos demais tecidos e secreções, os quais podem inclusive variar de acordo com a origem étnica.2,32 E fundamental que a definição dos grupos sanguíneos Lewis e do status secretor não se restrinja à avaliação dos eritrócitos e da saliva apenas, pois são evidentes as discrepâncias entre os fenótipos e os genótipos desses sistemas.8,9 Essas discrepâncias podem resultar de aspectos inerentes à biologia destes marcadores, bem como das limitações implícitas nos métodos e reagentes disponíveis para a acurada identificação dos fenótipos Lewis e secretor nos eritrócitos e na saliva.8,9,33
A completa determinação dos perfis dos glicoconjugados ABH-Lewis expressos pelos indivíduos envolvidos nos estudos, o uso de grupos-controle apropriados, o cuidado na seleção e na discriminação dos subgrupos de doenças, a importância das diferenças raciais na expressão dos antígenos ABH-Lewis e o adequado delineamento experimental-metodológico, poderão dar maior suporte à correta interpretação dos resultados na presença ou na ausência de infecção e também nas doenças relacionadas ao H. pylori. Isso poderá contribuir para a compreensão da importância biológica e evolutiva desses marcadores genéticos nas doenças infecciosas.
El autor no manifiesta conflictos.