Artículo completo
A hepatite auto-imune (HAI) é uma doença inflamatória crônica do fígado de etiologia desconhecida, que evolui, freqüentemente, para cirrose hepática, na ausência de tratamento imunossupressor. A doença acomete, usualmente, pacientes jovens do sexo feminino e caracteriza-se pela presença de hipergamaglobulinemia, autoanticorpos circulantes não-órgão específicos e alterações histológicas no parênquima hepático caracterizadas pela presença de hepatite de interface com infiltrado inflamatório composto preponderantemente por linfócitos T ativados e plasmócitos.1-3
A característica de um processo auto-imune é a reatividade anômala dirigida contra alvos antigênicos nos próprios tecidos do indivíduo. Apesar de manifestações extra-hepáticas auto-imunes ocorrerem em cerca de 10%-30% dos pacientes com HAI, o órgão-alvo da lesão é o fígado e os hepatócitos periportais são as células preponderantemente envolvidas. Nas células apresentadoras profissionais como células dendríticas, macrófagos ou células de Kupffer, ocorre a apresentação dos antígenos através das moléculas HLA aos linfócitos T de fenótipo auxiliador. Na presença de sinais co-estimulatórios, o reconhecimento de peptídeos antigênicos pelos receptores de linfócitos T (RCT) levam a sua ativação, proliferação com formação de clones e produção de citocinas e fatores que auxiliarão no recrutamento de outras células.4 Os linfócitos T do tipo auxiliador (CD4+) são as células que orquestram a resposta imunológica que inclui linfócitos T CD8+ (citotóxicos); linfócitos B e plasmócitos (células secretoras de anticorpos) e macrófagos. Clones T CD4+, infiltrantes no fígado de pacientes com hepatite auto-imune já foram identificados sem, no entanto, compartilhar um padrão único de RCT nos diversos pacientes.5-7 Por outro lado, vários auto-anticorpos órgão específicos e não-órgão específicos já foram identificados em pacientes com HAI, mas sua relevância na patogênese da doença é controversa. Os anticorpos contra microssoma de fígado e rim do tipo 1, citosol hepático do tipo 1, antígeno hepático solúvel e receptor da asialoglicoprotéina reconhecem, respectivamente, epitopos do CYP2D6, da formiminotransferase ciclodeaminase, do receptor da asialoglicoproteína (glicoproteína de membrana hepatocelular) e de uma ribonucleoproteína. A maioria dos outros auto-anticorpos associados à HAI reconhecem proteínas citoplasmáticas e antígenos nucleares ubiquitários.
Os outros elementos que protagonizam a resposta auto-imune são as moléculas HLA que apresentam os peptídeos. Estas têm sido os alvos sistemáticos dos estudos que buscam identificar os responsáveis pelo desencadeamento da HAI.
A prevalência da HAI não foi adequadamente estudada. Estima-se que cerca de 10% dos pacientes com doença hepática crônica seja portador de HAI.8 Ocorre esporadicamente em habitantes de certas regiões do Mediterrâneo e em países asiáticos, sendo freqüente no Norte da Europa9 e Austrália.10 No Brasil, a HAI é considerada uma causa rara de doença hepática crônica, compreendendo cerca de 5%-10% das doenças hepáticas nos principais centros de gastroenterologia do país.11,12 A classificação dos sub-tipos, aceita pela maioria dos autores13,14 baseia-se na presença de auto-anticorpos sem especificidade para determinado órgão e que não aparentam ser patogênicos.1,15,16 O tipo1 (HAI-1) ocorre quando há positividade para anticorpo anti-músculo (AAML), particularmente para anticorpo anti-actina (AAA), associado ou não a anticorpos antinucleares (AAN) e o tipo 2 (HAI-2) quando há positividade para anticorpo anti-microssomal fígado-rim-1 (AAMFR-1) e/ou para o anticorpo anticitosol hepático do tipo 1 (AACH1). Uma terceira variante de HAI caracterizada pela presença de auto-anticorpos dirigidos contra UDP-glucuronosyl-transferase foi recentemente proposta não sendo aceita pela maioria dos autores como um subtipo particular da doença.17
A classificação da HAI é sustentada pela heterogeneidade clínica da doença. Os pacientes com HAI-2, quando comparados aos portadores de HAI-1, apresentam características peculiares no início da enfermidade, tais como: menor idade, maior freqüência de hepatite fulminante, níveis mais elevados de bilirrubinas e de aminotransferases e mais reduzidos de gamaglobulinas.8,12,18 O tipo 2 é também mais raro que o tipo 1, sendo descrito particularmente em crianças da Europa Ocidental e América do Sul. Ambos os tipos apresentam resposta semelhante ao tratamento imunossupressor.13
Os dois tipos principais de HAI são diferentes também no perfil imunogenético. A predisposição genética é primariamente associado ao gene HLA-DRB1.19 Na Europa e Estados Unidos estudos mostraram associação do haplótipo HLA A1-B8-DR3 (DRB1*0301) e secundariamente ao HLA-DR4(DRB1*0401) com HAI-1.20 No Japão e na China foi observada associação com HLA-DR4 (DRB1*0405).21,22 Na Argentina, Fainboim et al.23 observaram associação de HAI-1 com as especificidades HLA-DR13 (DRB1*1301) e DQ6. Na Argentina e no México também foi observada a associação, respectivamente, com alelos DRB1*0405 e DRB1*0404.24,25 Já no Brasil, numa série de trabalhos conduzidos pelo nosso grupo26-28 foi observada a associação primária da HAI-1 com HLA- DR13 (DRB1*1301) em adultos e crianças e associação secundária com HLA-DR3 (DRB1*0301). Por outro lado, nos pacientes com HAI-2, a associação com HLA-DR7 e secundariamente com DR3 estava presente, reforçando a noção da dicotomia dos tipos de HAI.26
A diversidade na seqüência de aminoácidos presentes nos alelos do gene HLA-DRB1 associados à HAI-1 levou vários autores a proporem a existência de padrões ou motivos compartilhados na molécula HLA que permitiriam a apresentação de peptídeos antigênicos iguais ou muito semelhantes e como conseqüência, levariam ao desencadeamento da auto-imunidade e à instalação da doença.19,29-32 No entanto, os padrões propostos levam em conta parte dos alelos associados não sendo possível estabelecer-se um padrão único.33
A associação de HAI observada com genes HLA de classe II é uma das mais relevantes conhecidas, com riscos relativos sempre acima de 5, mas apenas em algumas formas clínicas há identificação do antígeno-alvo. O antígeno alvo na HAI-2 já pode ser caracterizado, devido a presença de anticorpos dirigidos contra a isoforma 2D6 do citocromo P450.34-36 Anti-CYP2D6 são encontrados em pelo menos 75% dos pacientes com HAI-2.34,35 A reativididade contra outros antígenos alvo, tais como a glutationa S-transferase, receptor de asialoglicoproteína, citoqueratina 19, citosol hepático tipo 1, DNA e cromatina, já foi rastreada, mas parece se correlacionar melhor com a progressão da doença.37-41 Por outro lado, não há até o momento confirmação da F-actina como auto-antígeno da forma mais freqüente de HAI, a tipo 1.42 Por fim, muitos destes auto-anticorpos não são específicos das hepatites auto-imunes, e na verdade, assim como com os anticorpos dirigidos contra a actina, são encontrados nas mais diversas manifestações de auto-imunidade.
Várias explicações são possíveis para as diferentes associações observadas. Por um lado, perfis clínicos e laboratoriais indicam uma heterogeneidade de formas de uma mesma doença, com indícios que os antígenos alvo possam de fato ser diferentes. Não pode ser descartada uma origem pelo mecanismo de mimetismo molecular com um patógeno ainda não identificado, que poderia também variar conforme a região ou país, levando ao reconhecimento cruzado e desencadeamento da auto-imunidade a partir de epitopos diferentes. O virus do herpes simples, do sarampo e das hepatites A e B já foram sugeridas.16,43,44 Na Argentina, um curso clínico atípico de hepatite aguda por vírus A, de maior duração e com auto-anticorpos positivos, foi associado à presença de HLA-DRB1*1301,45 inferindo-se que o vírus da hepatite A pudesse estar relacionado à presença de auto-anticorpos e mesmo ao desencadeamento de HAI. Contudo, a análise da prevalência de IgG para VHA nos pacientes brasileiros com HAI e em controles históricos, pareados por faixa etária, não demonstrou nenhum aumento significante na prevalência de infecção por VHA em pacientes com HAI, nem revelou freqüência aumentada de sorologia positiva para VHA em portadores de HAI com HLA-DRB1*1301 quando comparados a pacientes com outros antígenos HLA-DR (Bittencourt PL et al., dados não publicados).
Mesmo na ausência de um patógeno identificável, é possível que uma suscetibilidade anômala à lesão hepatocelular leve ao aparecimento, no próprio tecido hepático, de neo-antígenos ou antígenos crípticos, previamente seqüestrados ou escondidos, que se tornam então reconhecíveis. Esta poderia ser uma explicação para a forte presença da resposta humoral anti-músculo liso, que aparentemente reconhece estruturas do citoesqueleto, particularmente filamentos de actina polimerizada.46-48 Componentes adicionais de suscetibilidade, como a presença de polimorfismos que alteram a transcrição de TNF alfa ou CTLA4 vem sendo também investigados, mas também mostram padrões regionais ora com associação positiva ora sem significância.49-53 Assim, apesar dos grandes avanços já registrados no conhecimento da etiopatogenia da hepatite auto-imune, questões cruciais ainda permanecem não resolvidas: a natureza do auto-antígeno na HAI-1, o perfil mais completo de uma suscetibilidade genética que leva a auto-imunidade num órgão tradicionalmente considerado imuneprivilegiado e o papel de fatores ambientais e de patógenos no desencadeamento da doença.
Los autores no manifiestan conflictos.