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O curso da infecção pelo Trypanosoma cruzi varia amplamente em áreas endêmicas.1 As razões para esta variabilidade não são até hoje conhecidas, mas há evidências de que fatores do parasita e do hospedeiro e a interação entre eles influenciam a evolução da doença de Chagas. Muitos estudos têm sido conduzidos na tentativa de buscar correlações entre as características biológicas, bioquímicas e moleculares de populações parasitas e as variações clínicas da doença de Chagas.
Tibayrenc et al2 propuseram o modelo de propagação clonal do T. cruzi que prediz uma evolução paralela entre diferenças biológicas e divergência genética entre clones naturais desse parasita. Vários estudos mostraram uma forte ligação estatística entre diferenças genéticas e biológicas quando analisaram três ou quatro genótipos clonais do parasita.3-7
Em nosso laboratório, trinta e duas cepas de Trypanosoma cruzi isoladas de pacientes chagásicos crônicos originados de diferentes áreas endêmicas do Brasil e residentes no noroeste do Estado do Paraná, foram analisadas com base nas características moleculares, bioquímicas e biológicas. A análise molecular foi feita utilizando a média aritmética não ponderada (UPGMA) para construir uma árvore fenética a partir dos dados obtidos do RAPD (DNA polimórfico amplificado aleatoriamente) com três iniciadores (L15996 5’CTCCACCATTAGCACCCAAAGC3’; M13-40 5’GTTTTCCCAGTCACGAC3’; gt11 5’GACTCCTGGAGCCCG3’) e do SSR-PCR (reação em cadeia da polimerase ancorada em seqüências repetitivas pequenas) com o iniciador (CA)8RY, como descrito por Gomes et al.8 Esta análise mostrou a presença de um grande grupo bem correlacionado contendo 97.6% das cepas analisadas para o RAPD e 93.3% para o SSR-PCR e um grupo divergente contendo uma única cepa (PR-150) para o RAPD e duas cepas para o SSR-PCR, sendo uma delas a PR-150.
O comportamento bioquímico do agrupamento genético representado pela cepa PR-150 foi diferente do grupo genético que contém as demais cepas. Esta análise foi realizada para 11 cepas de T. cruzi. Estas foram crescidas em meio Liver Infusion Tryptose (LIT)9 e as células foram solubilizadas em tampão Tris salina 10 mM, pH 7.4, contendo 2% Triton X-114. Material insolúvel foi removido e as fases aquosa e detergente foram separadas em sucrose 6% e analisadas em gel de SDS-PAGE corado com reagente Schiff.10,11 Dez cepas pertencentes ao grupo genético que continha a maioria das cepas expressaram glicoconjugados com peso molecular de 36 kilodaltons (kDa), 44 kDa e 53 kDa na fase aquosa e 29 kDa, 32 kDa, 44 kDa e 66 kDa na fase detergente. No grupo genético contendo a PR-150 os glicoconjugados de 44 kDa e 29 kDa estavam ausentes na fase aquosa e detergente, respectivamente. Por outro lado, bandas de 36 kDa, 39 kDa e 44 kDa estavam presentes na fase detergente desta cepa.
Giovanni-de-Simone et al12 sugerem que preparações em Triton X-114 contém um polipeptídio anfifílico o qual é específico para as cepas CL e Colombiana de T. cruzi quando comparadas com o clone Dm 28c. Glicoproteínas sobre a membrana do parasita são os mais prováveis alvos para uma resposta imune efetiva. Variações na composição antigênica sobre a superfície do T. cruzi podem ter um papel importante na imunidade. Antígenos sobre a superfície do parasita podem servir como alvo para anticorpos tripanolíticos. O comportamento bioquímico diferente da cepa PR-150 pode estar relacionado ao fato do soro da paciente da qual essa cepa foi isolada apresentar 0% de atividade lítica (lise mediada pelo complemento, LMCo negativa) antes do tratamento. Antígenos cepa específicos podem ser relevantes para a identificação de isolados de T. cruzi, um fato que pode ter importância clínica, epidemiológica e de diagnóstico. Trabalhos recentes reportaram que glicoconjugados como o lipofosfoglicano (LPG) e proteínas de superfície gp63 estão associados com a metaciclogênese e virulência em Leishmania13,14 e também com a virulência de Entamoeba sp.15
Os dois agrupamentos genéticos observados para cepas isoladas de pacientes chagásicos crônicos também foram diferentes quanto à suscetibilidade ao benznidazol em camundongo. Para os outros parâmetros biológicos in vitro e in vivo investigados (taxas de crescimento e de metaciclogênese nos meios LIT e M16,16 infectividade das formas de cultura para camundongos, curvas de parasitemia e taxa de mortalidade) o comportamento biológico do agrupamento genético representado pela cepa PR-150 não foi totalmente distinto, mas apresentou-se peculiar.
A taxa de crescimento do grupo genético representado pela PR-150 foi maior no meio M16 do que no meio LIT quando avaliada nos dias 2, 4, 6 e 8 de cultivo. A taxa de metaciclogênese em M16 para este grupo foi de 68.6%. Para o outro grupo genético as 19 cepas analisadas mostraram uma alta heterogeneidade (variação de 2 a 74%) na taxa de metaciclogênese em meio M16 com acentuada tendência a produzir baixas taxas de transformação epimastigota-tripomastigota. O crescimento em meio LIT, em geral, foi maior do que no meio M16, sendo exponencial até o 6º dia e atingindo uma fase estacionária no 8º dia de cultivo.
Para o grupo genético contendo a maioria das cepas as formas tripomastigotas de oitavo dia de cultivo foram infectantes para camundongos C3H/He quando 0.3 ml de cultura contendo 1 a 74% de tripomastigotas, dependendo da cepa, foi inoculado. A parasitemia patente foi determinada pelo exame de sangue a fresco ou a subpatente pela hemocultura. Para o grupo genético representado pela cepa PR-150 a infectividade foi detectada somente após o 40º dia de cultivo, mostrando um escasso número de parasitas. Para este grupo a microscopia ótica mostrou que as formas de cultura eram aglutinadas, arrendodadas e com curto flagelo. Após sucessivos cultivos em meio LIT, epimastigotas mais largas do que longas com curto flagelo prevaleceram. Esta característica não foi observada para as cepas pertencentes ao outro grupo genético.
A curva de parasitemia e a mortalidade não diferiram entre os dois grupos genéticos. Para 26 cepas de T. cruzi, grupos de cinco camundongos C3H/He foram inoculados por via intraperitoneal com 5 x 103 tripomastigotas sanguíneos de cada cepa. A parasitemia foi determinada pelo exame de sangue a fresco e o número de parasitas foi registrado de acordo com Brener,17 iniciando-se no 4º dia de infecção. As curvas foram determinadas usando a média de parasitemia de cinco camundongos. A maioria das cepas mostrou baixa ou média parasitemia, sendo que o pico variou de 6 x 103 a 1,4 x 106 e ocorreu entre o 13º e 32º dia após infecção. A taxa de mortalidade foi registrada por um período de até 120 dias após inoculação e expressada como porcentagem acumulada. Das 26 cepas estudadas a mortalidade foi nula em 23 cepas, foi de 20% após 15 dias para uma cepa e de 12.5 e 25% após 100 dias de infecção para outras duas cepas.
A suscetibilidade ao benznidazol foi avaliada para 13 cepas e mostrou-se totalmente diferente entre os dois grupos genéticos. Grupos de 20 camundongos Swiss foram inoculados com 1 x 103 ou 1 x 104 tripomastigotas sanguíneos dependendo do pico de parasitemia da cepa. Para cepas com parasitemia subpatente os camundongos foram inoculados com 1.9 x 107 tripomastigotas de cultura obtidos do meio M16. Dez animais foram tratados pela via oral com benznidazol (Rochagan-Roche), na dose de 100 mg/kg de peso corporal, por 20 dias consecutivos, começando tão logo a infecção foi detectada pelo exame de sangue a fresco ou pela hemocultura. Este período variou de 10 a 25 dias após a inoculação. Para determinar a taxa de cura a hemocultura foi realizada 30 dias e a imunofluorescência indireta (IFI) seis meses após o término do tratamento como descrito por Filardi & Brener.18 Os camundongos foram considerados curados quando os testes de hemocultura e IFI foram negativos. Os camundongos que apresentaram títulos de IFI ≥ 20 foram considerados como falha terapêutica. Para cada cepa dez animais foram usados como controle não tratado. Durante os experimentos de suscetibilidade a parasitemia foi monitorada após tratamento pelo exame de sangue a fresco durante 30 dias, três vezes por semana. A mortalidade não foi observada no período de avaliação (seis meses). Para as cepas pertencentes ao grupo genético contendo a maioria das cepas a suscetibilidade ao benznidazol variou de 15 a 100%, sendo que para seis cepas a suscetibilidade ficou entre 60 e 100% e para as outras seis entre 15 e 50%. Por outro lado, o grupo genético representado pela cepa PR-150 foi totalmente resistente ao benznidazol (0% de cura). Isto pode estar relacionado à constituição glicoprotéica dessa população parasita, uma vez que esta cepa apresenta comportamento bioquímico peculiar.
No grupo genético que contém a maioria das cepas foi observada uma variabilidade das características genéticas e biológicas. Isto pode ser explicado pelo fato de termos trabalhado com cepas geneticamente heterogêneas19,20 e não com populações clonadas do T. cruzi. Estudos realizados por Revollo et al4 e Toledo et al6 com clones do parasita e explorando sistematicamente os parâmetros biológicos mostrou um grande desvio padrão para características biológicas em um grupo genético bem definido. Esses autores verificaram que apesar da variabilidade intragrupo, uma correlação significante, mas não absoluta, existe entre os parâmetros biológicos e genéticos.
Em nosso laboratório observamos que um grupo geneticamente definido apresentou comportamento bioquímico e biológico peculiar. Estes resultados estão em concordância com os obtidos por diferentes estudos que reportaram comportamento biológico distinto para estoques clonados do T. cruzi que são geneticamente distantes.3,4,6,7 No entanto, este grupo é representado por uma única cepa. Uma possível explicação é que esta cepa não pertencesse à espécie T. cruzi. No entanto, a cepa PR-150 foi isolada de uma paciente assintomática de Januária, MG. Esta cepa foi também infectante para células “Vero”. Na análise molecular usando amostras de Trypanosoma rangeli, Leishmania e de outras cepas de T. cruzi a PR-150 agrupou com a espécie T. cruzi.
Outra explicação é que os resultados poderiam estar relacionados ao fato de que apenas cepas isoladas de humanos foram analisadas ou está relacionado à qualidade das ferramentas utilizadas. Gomes et al8 mostraram que uma cepa particular pode agrupar-se em diferente grupo dependendo da técnica empregada (RAPD ou SSR-PCR).
Frente a esses resultados nossa próxima etapa foi caracterizar geneticamente cepas de T. cruzi autóctones do Estado do Paraná isoladas de pacientes chagásicos crônicos (4), triatomíneos (4) e reservatórios silvestres (4) e verificar qual a relação existente entre essas cepas e os grupos genéticos T. cruzi I e II. Dois estoques referências pertencentes a estes dois grupos genéticos (Sylvio e Esmeraldo), juntamente com as cepas isoladas destes diferentes hospedeiros foram analisadas pelo RAPD e SSR-PCR, segundo Gomes et al.8 A árvore fenética mostrou a existência de dois grupos genéticos distintos: um contendo as cepas isoladas de pacientes chagásicos que agrupou com a cepa Esmeraldo (T. cruzi II) e o outro com as cepas isoladas de triatomíneos e reservatórios silvestres que agrupou com o clone Sylvio (T. cruzi I). Pela primeira vez a existência de dois grupos filogenéticos do T. cruzi no Estado do Paraná, Sul do Brasil está sendo descrito, enfatizando a existência de T. cruzi II neste estado, uma vez que o T. cruzi I já foi anteriormente observado por Soccol et al.21
O comportamento bioquímico e biológico peculiar da cepa PR-150 levou-nos a compará-la com as 12 cepas de T.cruzi isoladas de diferentes hospedeiros do estado do Paraná. Nós observamos que a 150 agrupou com outras cepas isoladas de humanos juntamente com a cepa Esmeraldo (T. cruzi II), apesar de ter exibido maior distância genética em relação às demais cepas. Este fato confirma os dados já obtidos para essa cepa e abre a perspectiva de verificar uma possível correlação entre as características genéticas, biológicas e bioquímicas das cepas isoladas do estado do Paraná. Uma hipótese corrente sugere que a heterogeneidade e multiclonalidade de uma cepa determinam tropismo tissular diferente e conseqüentemente variações na apresentação clínica da doença.22 Uma correlação entre diversidade genética do T. cruzi e sua patogenicidade foi recentemente proposta como modelo histotrópico clonal que está baseado nos dois fatores acima mencionados.23-25
A existência desses dois grupos genéticos e da propagação clonal predominante do T. cruzi26 conduziu-nos a verificar qual a correlação existente entre as características biológicas in vitro e in vivo e a distância genética para essas cepas circulando no estado do Paraná. Para o estudo in vitro foram analisados 12 parâmetros relacionados à cinética de crescimento e metaciclogênese utilizando os meios LIT e M16 e avaliados nos tempos de 0, 12, 24, 36, 48 e depois de 48 em 48 horas perfazendo um total de 288 horas. As contagens foram realizadas em câmara de Neubauer para determinar o número total de parasitos e em esfregaço confeccionado com alíquota de 50 μl de cultura para verificar o percentual de formas tripomastigotas e formas de transição epimastigota-tripomastigota. A análise dos resultados realizada pelo programa SAS (Statistical Analysis Sistem) – versão 8.02 pelo teste de MANOVA/Duncan e Wilks’Lambda, Kruskal-Wallis e Kolmogorv-Smirnov, ao nível de 5% de significância, mostrou que dois (16.7%) destes parâmetros, número máximo e porcentagem de tripomastigotas em cultura em meio LIT, mostraram diferenças significativas entre cepas pertencentes aos grupos T. cruzi I e II. Para cada uma das 12 cepas de T. cruzi estudadas, os parâmetros in vivo (infectividade, curva de parasitemia, período pré-patente, período de patência, dia do pico de parasitemia, parasitemia máxima e mortalidade) foram analisados em grupos de seis camundongos BALB/c machos de 21 dias de idade inoculados com 5 000 tripomastigotas sangüíneos via intraperitonial. Destes sete parâmetros, seis (85.7%) também mostraram diferenças significativas entre esses dois grupos genéticos como demonstrado pelo teste do Qui-quadrado (nível de significância de 5%).
Os dados relatados nesse trabalho estão em concordância com outros autores que baseados na estrutura clonal do T. cruzi2 mostraram que as diferenças genéticas têm grande impacto sobre o comportamento biológico do parasita, incluindo propriedades médicas relevantes, tais como, virulência, patogenicidade e resistência a drogas anti-T. Cruzi.4,7
Estes estudos abrem perspectivas para melhor investigar o impacto desses dois grupos genéticos na evolução clínica da doença de Chagas, melhorando a abordagem/manejo de pacientes chagásicos. Marcadores genéticos de cepas resistentes ao benznidazol poderiam também ser identificados, desde que uma única droga está disponível para o tratamento etiológico dos pacientes chagásicos. Poderia ainda auxiliar estudos para o encontro de uma droga alternativa que vier a ser descoberta. Desta forma, a procura destas informações está de acordo com a premissa de que grupos que trabalham com pesquisa básica e atendem pacientes chagásicos tem o dever moral e ético de reverter esses conhecimentos em benefícios destes pacientes.
Los autores no manifiestan conflictos.