1. INTRODUÇÃO
Atualmente já conhecemos a influência dos fatores psíquicos e sociais, além dos
biológicos, na etiologia e na manutenção da dor crônica, assim como a necessidade de tratar
rápida e multidisciplinarmente nosso paciente. Na esfera oncológica, a Organização Mundial da
Saúde considera que o controle da dor e os cuidados paliativos devam ser prioridades no sistema
de saúde pública, incluindo a educação e o treinamento dos profissionais de saúde, nas diferentes
fases e tipos de cuidados, como parte integrante do tratamento adequado.1
2. A COMPREENSÃO DA DOR ATRAVÉS DOS TEMPOS
A subjetividade da dor fez com que ela fosse historicamente compreendida e explicada
de forma mítica, mística ou religiosa. Uma vez que dor e sofrimento eram inseparáveis, eram
socialmente tidos como castigos merecidos pela provocação da cólera dos deuses ou ira divina, e
ainda martírios necessários para a purificação e a salvação da alma. Tais conceitos parecem ter
de algum modo se fixado no imaginário coletivo, sendo transmitidos de geração para geração e
levando muitos pacientes questionarem o que fizeram de errado para merecer sua doença, sua
dor, enquanto há outros acreditando que para crescer e amadurecer é preciso sofrer.2
Na história nem tão antiga, no continente europeu, a dor foi também um importante meio
de coerção política, social e religiosa, sendo utilizada legalmente para ameaçar e punir os
indivíduos e/ou a coletividade,3 mas o direito de punir e castigar era também uma
maneira de buscar vingança pessoal e pública.4
Na história contemporânea das sociedades, o poder continuou e continua infligindo
punições e sofrimentos não apenas físicos como também sociais e psicológicos aos indivíduos
discordantes do sistema, seja nos porões das ditaduras, seja nas torturas cotidianas de múltiplas
faces nas sociedades mais liberais, em todos os seus seguimentos, até mesmo nas famílias. Como
é possível perceber, a dor foi e é moeda forte quando se trata de conquistar e manter o poder.
Possivelmente isto retardou os avanços científicos no estudo do fenômeno dor.
Somente no início do século XIX, com o isolamento da morfina, foram desenvolvidos os
opióides e em 1850, com a identificação dos receptores neurológicos e da transmissão dos
impulsos nervosos, a dor física finalmente foi separada do sofrimento social, tornando-se um
fenômeno biológico, explicado fisiologicamente. Posteriormente com a introdução
da anestesia cirúrgica, em 1846, da anestesia local, em 1884 e da aspirina, em 1899.3
é facultado ao homem do século XX o direito de não sentir dor.
Todavia, a dor era agora explicada somente neurologicamente e as dores que não tinham
um substrato físico-orgânico claramente identificável continuavam inexplicadas. Freud, então,
provoca um corte epistemológico na história da Ciência ao refutar a visão de mundo
reducionista, mecanicista e determinista da física newtoniana e do pensamento cartesiano,
dominantes desde o século XVII, com suas revolucionárias idéias reunidas, no nascimento do
século XX, sob o nome de Psicanálise.2
Por outro lado, também no início do século XX, a crença nas leis objetivas do universo,
na existência de uma verdade absoluta e na certeza da observação são abaladas pela Teoria da
Relatividade de Einstein e a Psicologia da Gestalt, conceituando que "o todo é mais do que a
simples soma das partes", releva a importância do contexto, uma vez que para haver percepção
(então distinta de sensação) necessariamente precisaria haver uma diferença (figura/fundo).
2
Atualmente, a partir destes novos paradigmas, pensamos em corpo e mente como um
sistema integrado. Observamos e tratamos pessoas, e estas são muito mais do que os sintomas
que apresentam, entre eles a dor.2 A distinção entre doença do cérebro e da mente,
problemas neurológicos, psicológicos ou psiquiátricos, reflete uma herança cultural infeliz e
equivocada.5 Estudos recentes6 demonstram, através de exames de
neuroimagem, que alguns mecanismos neurais recrutados na experiência e na regulação da dor
física estão também envolvidos na experiência e na regulação da dor associada com separação
social ou rejeição, dividindo ambas uma mesma base neuro-anatômica. Em poucas palavras, já
existe evidência de que rejeição dói.6
Voltando à história, as teorias freudianas sobre a existência de um princípio de constância
do aparelho psíquico7 que, à semelhança do conceito de homeostase, seria uma
tendência, inerente ao sistema nervoso, para reduzir totalmente ou pelo menos manter constante
as excitações presentes e assim manter o equilíbrio do aparelho psíquico8 e a
consideração de todo processo mental de forma dinâmica, topográfica e econômica9
trouxeram suas contribuições em direção à uma reinterpretação dos mecanismos da dor, tanto
quanto à sua etiologia, quanto à sua manutenção. Na intenção de compreender as neuroses,
Freud9 teoriza que um determinado impulso instintual inconsciente (cujo reservatório
é o id) geraria desprazer, levando o ego (instância psíquica representante da realidade) a
tentar suprimir tal impulso. Caso o ego falhasse, em maior ou menor escala, este impulso
ainda tentaria ser admitido no sistema consciente, e para tal encontraria um substituto, "mais
reduzido, inibido e deslocado", isto é, o sintoma, que seria uma formação de compromisso
entre o impulso inconsciente do id e as exigências defensivas do ego, reduzindo assim a
situação de conflito. O sintoma, ao ser uma fuga para a doença, seria considerado um benefício
(ganho) primário. Por outro lado, o esforço do ego para incorporar o sintoma terminaria
por aumentar a fixação do mesmo, tornando mais difícil desfazer esse compromisso entre as
instâncias psíquicas e levando o indivíduo, então, a tirar o melhor proveito da sua doença, o que
seria o ganho secundário.
Freud9 observou, ainda, que mesmo as dores físicas mais intensas deixavam
de surgir quando havia um desvio psíquico ocasionado por outro foco de interesse e que a
ansiedade realística (devida a perigos externos) podia mesclar-se à ansiedade neurótica (devida a
perigos internos), manifestando-se de forma mais comedida ou desmedida. Assim, os sintomas
não seriam frutos de uma simples relação causa-efeito, mas teriam uma multiplicidade causal e,
por serem um estado afetivo, teriam a característica da subjetividade. A psicodinâmica do
sintoma dor passa a ser então estudada desde a predisposição à dor até os mecanismos de
manutenção e perpetuação da dor, nada sendo considerado como acaso.
Paralelamente à Psicanálise, novas informações como o conceito de stress e a evidência
de interação entre os sistemas nervoso e imunológico, atestam que as experiências cotidianas da
vida poderiam causar impressões físicas no corpo e que toda doença afetaria a psiqué e o
soma, como explicariam a Psiconeuroimunologia e a Medicina
Psicossomática.10
Ao contrário das teorias freudianas, os teóricos cognitivo-comportamentais acreditavam
na causalidade linear existente entre a manutenção da dor e as influências ambientais e que a dor
seria reforçadamente mantida apenas pelo ganho secundário através dela obtido. Afirmavam que
o comportamento poderia ser modelado como resultado direto do ambiente, sendo a dor
sensorial, "respondente", distinta da dor "operante", esta motivada por necessidades
psicológicas.11
De toda forma, a partir da 2ª metade do século XX, a dor passa a ser vista como um
fenômeno não somente biológico como também psicológico.
Também nesta época, os primeiros terapeutas de família e teóricos sistêmicos estudam a
comunicação humana concluindo que, em condições de interação, é impossível não comunicar, e
que toda comunicação tem um aspecto de conteúdo e um aspecto de relação, sendo portanto
manifesta, mas também latente.12 Pode-se afirmar que há mais de uma forma de se
comunicar a dor. Pode-se ainda dizer que a dor, como qualquer outro sintoma, comunicaria
aspectos que escapariam ao observador e que não estariam claramente conscientes nem mesmo
para o sofredor. Assim, diante de um paciente com dor é preciso pesquisar do quê fala esta dor, e
o quê é que ela cala.2
Os teóricos sistêmicos viam o sintoma como uma característica disfuncional do
sujeito, até que, em 1977, o físico Prigogine afirmou que um sistema tenderia tanto à
homeostase quanto à mudança, havendo "ordem através da flutuação", e assim o sintoma passou
a ser considerado não mais como uma característica do sujeito, mas sim como uma característica
do sistema.12 Um pouco adiante, nos anos 80, o Movimento Construtivista
defendeu a idéia da não existência de dois sistemas separados (observador x observado), mas de
apenas um, chamado por Von Foerster13 "sistema observante", onde a realidade é co-
construída sendo o conhecimento, portanto, uma ilusão. Outra ilusão, para o biólogo
Maturana,14 seria a interação instrutiva, pois o ser humano seria um sistema com
estrutura determinada, donde o que aconteceria ao entrar em contato com o ambiente dependeria
de sua estrutura no momento e não diretamente do ambiente que seria, sim, um gatilho (mais ou
menos favorecedor) para as mudanças. Sendo assim, até mesmo a ação de tratar tem seu caráter
de relatividade.
Ao trazermos estes conceitos para a prática clínica, percebemos que são importantes não
somente os contextos que contribuíram para a produção e manutenção da dor, sendo o sistema
familiar um exemplo, como também o contexto que envolve o momento do diagnóstico e o
tratamento oferecido, pois qualquer diagnóstico seria uma invenção, uma co-produção, pois
envolveria não somente os sintomas – fala do paciente, como também os sinais – fala do técnico,
este também possuidor de sistema próprio de crenças e valores e passível da ocorrência e da
alternância dos mais variados estados afetivos.2 O paciente denuncia esta co -
produção especialmente quando, ainda assintomático, tem o câncer precocemente diagnosticado,
dizendo-nos: "Ele (o médico) é quem diz que eu tenho isto (leia-se: fez isto a mim, deu-me
isto)..., mas eu não sinto nada!".2 E não são poucas as vezes em que o paciente recusa
o tratamento a ele oferecido por julgar que o médico está equivocado e que os exames de
imagem apresentados, se não foram trocados, não sabem mais a seu respeito do que ele mesmo.
Desta forma, devemos atentar para o fato de que o tratamento começa já pelo cuidado na
hora do diagnóstico.
3. DEFINIÇÃO, MECANISMOS E DIAGNÓSTICO DA DOR
De acordo com a International Association for the Study of Pain (IASP, fundada em
1973) "dor é uma desagradável experiência sensorial e emocional associada a um dano atual ou
potencial do tecido, ou descrita em termos deste dano"15 e o termo "desagradável"
desta definição já denota o caráter subjetivo da dor, que abrangeria mecanismos fisiológicos,
psicológicos e comportamentais, sendo que o seu experenciar sucessivo criaria um
"comportamento de dor" que envolveria os pensamentos, os valores culturais, e o ganho
secundário.16
Os fatores neuro - hormono - químicos também fazem parte, junto com os biológicos,
psicológicos e comportamentais, da complexa síntese que define a dor.17 A relação
entre estímulo psicossocial e a resposta endócrina foi explorada nos anos 70-80, e a
Psiconeuroendocrinologia se estabeleceu como disciplina.18 Posteriormente este
termo evoluiu para Psiconeuroimunoendocrinologia, por revelar a inter-relação entre estes
sistemas, ligação esta que explicaria a associação encontrada, na prática clínica, entre estresse
psicológico e infecção, e a associação encontrada entre depressão e uma menor resistência à
infecção e à propensão ao desenvolvimento, morbidade e mortalidade por câncer.19
Quanto aos mecanismos da dor, estamos hoje cientes da possibilidade de ausência de dor
na presença de um estímulo nocivo, da percepção de dor na ausência de um estímulo nocivo e da
manutenção da dor mesmo após o desaparecimento deste, quando a resposta de dor na ausência
do estímulo que a originou, tornar- se - ia uma resposta a diversos estímulos semelhantes ou não
ao original, encontrando uma maneira de se manifestar. Só não se sabe por que isto acontece, e
por que com algumas pessoas sim e com outras não.2
Estudos sobre a dor fantasma revelaram que o cérebro é capaz de gerar qualquer
tipo de experiência provocada normalmente por um estímulo sensorial, e que esta dor poderia
aumentar devido a problemas psicológicos, excitação ou depressão dos pacientes, sendo possível,
ainda, associar um estado de bem-estar à diminuição da dor.20 Embora a etiologia da
dor fantasma seja desconhecida, supõe-se haver uma memória somato-sensorial que não
se localiza especificamente em uma região do cérebro, mas envolve, sim, uma complexa
interação de redes neurais no cérebro.21
Ora, mas já na 1ª metade do século XX Freud22 acreditava que os estados
afetivos, como a dor ou a ansiedade, seriam uma reprodução de um evento antigo (experiências
traumáticas primevas) que representaria uma ameaça de perigo, uma vez que paralisaria a função
reguladora do princípio de prazer. Para ele, a partir do momento em que uma experiência
dolorosa primeva se gravasse no psiquismo, ao ocorrer uma situação semelhante, por mais
parcial que fosse, os estados afetivos precipitados pela antiga experiência dolorosa seriam
revividos como símbolos mnêmicos.
A resposta consensualmente confiável para esta e outras questões ainda está por vir,
mas atualmente concorda-se que múltiplos fatores em diversas esferas contribuem, todos, para o
desenvolvimento das síndromes de dor crônica, que as vias da dor são a sensação, a transmissão,
a percepção e a reação, e que as medidas de sensibilidade são individuais, assim como todos os
demais mecanismos de dor. Esta subjetividade que permeia tais mecanismos leva-nos a
rejeitar a existência de uma verdade quanto à etiologia da dor, sua manutenção e a eficácia de
seu tratamento.2
Antes mesmo da mudança de paradigma advinda no século XX, a filosofia kantiana do
fim do século XVIII já havia distinguido o objeto em si (objeto "real"), que é inatingível, do
objeto como ele aparece (objeto percebido e interpretado individualmente), este sim por cada um
cognoscível.23 E a Psicanálise, por sua vez, advertiu ser possível que um desejo ou
uma ameaça sejam tão fortemente experimentados a ponto de serem reconhecidos, pelo
indivíduo, como fatos reais. Para o psicanalista contemporâneo Nasio,24 a dor
resulta de uma dupla percepção: uma que é externa, somato-sensorial, voltada para captar a
sensação dolorosa, e outra que é interna, somato-pulsional, voltada para captar o transtorno
psíquico que se segue após a primeira.
Não se pode dizer o que é realidade absoluta, já que as diversas imagens (perceptivas,
evocadas a partir de um passado real e evocadas a partir de planos para o futuro) são construções
do cérebro, sendo reais para quem as têm. As imagens mentais seriam construções momentâneas,
tentativas de réplica de padrões que já foram experienciados, e o que seria armazenado não seria
a imagem em si, mas um meio de reconstruir um esboço dessa imagem.5
Ao fazermos um diagnóstico devemos nos lembrar que, sendo a essência do objeto de
observação, o objeto em si, inatingível, não existe objeto natural, mas sim cultural, histórico e
que as ciências que visam um saber sobre o homem originaram-se do desejo de exercer um
saber-poder ligado à necessidade de vigilância e controle sócio-político, utilizando-se hoje do
exame do mesmo modo como um dia a Inquisição utilizou-se da confissão.25
O profissional deve, pois, ficar atento aos próprios conteúdos internos, ao seu "jeito de
ser", aos seus preconceitos e expectativas, e ao estado de humor que apresenta no momento do
atendimento ao paciente, posto que também ele influencia, sem porém determinar, os caminhos
da dor daqueles de quem cuida.2
4. COMUNICAÇÃO E MENSURAÇÃO DA DOR
A forma de comunicação da dor dependerá de fatores, tais como: idade do paciente, sexo,
estrutura de personalidade, funções cognitivas, história pessoal, contexto sócio-familiar e de dor,
estado afetivo e condições psico-orgânicas do momento. Acredita-se que a comunicação da dor
dependerá ainda, diretamente, da qualidade do ouvinte,2 da disponibilidade
real e sincera de escuta, da comunicação inequívoca, pelo ouvinte ao paciente, de sua
determinação inarredável em dele cuidar.
Para medir a presença e a severidade da dor, é preciso considerar o auto-relato, as
observações clássicas, e também outras variáveis como depressão, ansiedade, o significado da
dor para o paciente, o seu suporte familiar e seus possíveis receios quanto a incomodar ou levar o
seu médico a desistir do tratamento, pela fantasia de progressão de doença, caso seja confessado
um aumento de sua dor.26
Como nenhum parâmetro isolado pode ser fidedigno, atualmente procura-se fazer uma
mensuração combinada da dor do doente, considerando-se: o auto-relato; como o
paciente percebe e comunica a sua dor; crenças, fantasias e expectativas (do paciente, de seus
familiares e da equipe de tratamento) relacionadas à esta dor; a história pessoal; o contexto sócio
- familiar; as alterações afetivas, sociais, familiares e comportamentais; o relato da família; o
comportamento e a história de dor; a postura corporal; a mímica facial; os sinais fisiológicos; os
marcadores biológicos; as escalas específicas e qualquer outra forma de expressão encontrada.
Sabemos, ainda, que cada pessoa vai perceber, reagir e elaborar sua dor de forma particular e
assim, o ser humano estará sempre surpreendendo, desafiando os saberes e reformulando novas
teorias e técnicas.2
A Escala Análogo- Visual de Dor (EAV),27 que por suas limitações é muitas
vezes pouco utilizada e/ou compreendida, é um importante instrumento na mensuração da dor
crônica, pois ajuda o paciente a compreender melhor quando e quais fatores influenciam a sua
percepção da dor, levando-o, ainda, a um maior comprometimento2 com as
informações que fornece, uma vez que estas serão sempre parâmetros para a avaliação da
adequação do tratamento. Muitas vezes encontra-se resistência do paciente a este método, sendo
necessário que ele compreenda bem os objetivos e confie que a intenção do profissional é tratá-lo
eficaz e continuamente e que este não desistirá de manter seu tratamento, no caso de significante
melhora, nem ficará decepcionado e/ou aborrecido desistindo de tratá-lo, no caso de pouca ou
nenhuma resposta. Para tornar-se uma linguagem confiável, a EAV deveria ser utilizada de
forma consensual pela equipe, preferencialmente com as respostas da dor referida no momento
da consulta e com as respostas da "dor em média" relatadas pelo paciente, sinalizando-se, em
ambos os casos, as condições afetivas e de medicação.2
Vale ressaltar a necessidade de reorientação periódica a pacientes e/ou familiares sobre
vários aspectos que envolvem o tratamento farmacológico, desde os efeitos colaterais, receios e
preconceitos, às demais e inúmeras fantasias e dificuldades que levam ao uso irregular da
medicação, comprometendo o sucesso do tratamento. Somente após algumas consultas
psicológicas é que foi possível compreender o motivo pelo qual a medicação adequada não
produzia o efeito esperado em P., um homem beirando os 40 anos. Segundo o paciente, o que
demandava a necessidade que seu corpo tinha da medicação anti-álgica era o câncer que tinha.
No seu modo de ver, se ingerisse os remédios que "ele" (o câncer) necessitava, só estaria
fortalecendo o tumor, "alimentando-o". Sendo assim, não apenas recusava a medicação, como
sentia-se vitorioso na luta diária contra o câncer, sendo a dor insuportável o preço que deveria
pagar para tanto.
Observa-se que alguns pacientes, sobretudo as crianças, os adolescentes e os idosos,
muitas vezes podem levar a erros de julgamento ocasionados por problemas na comunicação,
justificados pelos motivos mais variados e já classicamente reconhecidos e descritos, como a
supervalorização, a desvalorização e a negação da dor. Gostaríamos aqui de incluir o problema
da omissão da dor. X., uma menina de sete anos, hospitalizada em estado bastante grave,
aguardava a remota possibilidade clínica de ser elegível para iniciar tratamento quimioterápico.
Seu comportamento era de total isolamento, cobrindo-se com o lençol de seu leito até à cabeça,
em posição fetal, e reagindo agressivamente a qualquer tipo de aproximação feita, até pelos
familiares. Recusava comida, banho, brinquedos, visita, e todo e qualquer procedimento médico
e/ou de enfermagem de rotina, chorando e gritando de tal forma que por vezes impedia a
realização dos mesmos. Quando por nós abordada, X. revelou que sentia "dor muito forte", e ao
ser questionada quanto ao motivo pelo qual não havia comunicado a sua dor, ela respondeu, com
raiva: "Eu já falei um monte de vezes e ninguém faz nada!" X. estava , sim , medicada,
mas não a contento, e assim perdera a confiança em todos à sua volta, sentindo- se sozinha e
desamparada, desistindo de solicitar ajuda. Uma vez psicologicamente acompanhada e
tendo sua dor controlada, X. começou a reagir, a sorrir, e, "curiosamente", a melhorar a
olhos vistos, adquirindo os sinais clínicos necessários para iniciar seu tratamento
oncológico.2
Em estudo28 realizado para determinar se haveria diferença, nos pacientes
oncológicos externos, entre a percepção que o paciente tinha de sua dor e a percepção que seus
familiares tinham acerca de sua dor quanto à intensidade, duração, estado de humor e qualidade
de vida, concluiu-se que os pacientes oncológicos que têm percepção de dor diferente da do seu
familiar tendem a ter, dentre outros sintomas, mais distúrbios de humor, mais fadiga, e menos
bem-estar psicológico e interpessoal. E seus familiares têm níveis de depressão e tensão
aumentados, sendo que 30% sentiu incapacidade de lidar com a dor do paciente, enquanto 22%
sentiu grande estresse devido ao sofrimento do paciente.28 Obviamente lembramos
aqui que percepções incongruentes por parte da equipe também resultam em problemas no
tratamento.
Na avaliação do paciente com dor crônica, deve-se, ainda, ficar atento tanto à co-
morbidade quanto ao diagnóstico diferencial entre dor e outras síndromes de características
predominantemente orgânicas e/ou psicológicas. Pesquisa com pacientes com dor crônica
demostrou que o aumento da duração da dor favorecia a depressão, e que os pacientes
deprimidos tinham aumento da percepção de dor, menos tolerância à dor e beneficiavam-se
menos do tratamento.29
5. DOR EM PACIENTES ONCOLÓGICOS
A dor em câncer pode ser causada pela doença, à ela relacionada, resultante de
procedimentos diagnósticos e/ou de tratamento, ou ainda causada por um transtorno concorrente.
A prevalência de dor crônica é de 30 a 50% nos pacientes em tratamento oncológico para
tumores sólidos, subindo para 70 a 90% naqueles com doença avançada no momento do
diagnóstico.30
As neoplasias são, no Brasil, a 2ª causa de morte e o Instituto Nacional de Câncer -
INCA/MS31 estimou que o ano de 2003 apresentaria 402.190 novos casos de câncer,
doença que, como vimos, associa-se em algum momento à dor. Deste montante 267.980
incidiriam na região sudeste, onde está localizada a cidade do Rio de Janeiro, sede da Clínica de
Dor do INCA, que é O INCA é uma das poucas instituições brasileiras a manterem um Centro
Multidisciplinar de Dor nos moldes da IASP e portanto de referência nacional.
Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS,32 a dor é passível de
controle em cerca de 90% dos pacientes. Entretanto, ainda nos dias de hoje, na maioria das
unidades de saúde, falta conhecimento, habilidade e até interesse no manejo da dor e muitas
vezes os esforços daqueles que empenham-se no tratamento adequado esbarram nos preconceitos
de seus colegas e da população em geral, e em questões de cunho político, econômico e social.
Embora a incidência e a mortalidade por câncer continue a crescer, os países em
desenvolvimento investem muito nos esforços curativos e pouco e inadequadamente nos
cuidados paliativos, quando uma grande maioria já apresenta doença incurável à época do
diagnóstico.33
O câncer por si só já implica na perda de energia, amigos, e saúde e a dor não aliviada
gera ansiedade e sintomas depressivos, agravando tais perdas e prejudicando as funções
cognitivas, as atividades diárias e sociais e o sono, que é interrompido pela dor em 58% dos
pacientes.34
As intervenções não - farmacológicas, como as técnicas psicológicas, a acupuntura, a
fisioterapia, a RXT e a cirurgia, dentre outras, embora muito importantes no tratamento do
paciente com dor oncológica, são raramente indicadas e dificilmente disponibilizadas pelos
centros de tratamento oncológico.35
Algumas dores crônicas são mais dificilmente controláveis, em determinado paciente,
fazendo-se necessário que ele tenha que conviver com ela, em algum nível, e com as limitações
por ela trazidas. Uma maior aceitação de sua dor leva o paciente a conhecê-la e controlá-la
melhor, esforçando-se para ter uma vida satisfatória apesar dela. Isto implica em relatos de dor
de intensidade mais baixa, menos ansiedade e sintomas depressivos e menos incapacidade física
e psicossocial.36
A experiência de dor crônica é estressante tanto para o paciente quanto para seus
familiares, amigos, cuidadores e também para a equipe que o trata. Uma vez que o sistema
familiar funciona de acordo com padrões e regras próprios, quando um membro adoece toda a
organização deste sistema é abalada, "adoecida", compelida a mudanças muitas vezes
complicadas que podem ser difíceis de elaborar. A despeito da multiplicidade de modalidades de
tratamento que um Centro Muldisciplinar de Dor possa oferecer, é o familiar, o cuidador, quem
se responsabiliza, em grande parte dos casos, pela administração da medicação e pelo
oferecimento de outras medidas que aliviam a dor, pelo transporte do paciente, inclusive para a
realização do tratamento, pelo seu bem estar físico e psicológico. Cabe à equipe orientar os
familiares/cuidadores do paciente, e se preciso tratá-los psicologicamente, formando uma aliança
de mútua confiança e divisão de responsabilidades e buscando identificar e solucionar problemas
por eles enfrentados e/ou criados.2
É preciso não apenas demandar, mas também viabilizar mudanças. A percepção e/ou a
reação do adulto, e principalmente da criança e do adolescente, à sua dor, dependerá não somente
de si mesmo e de sua família, como já foi visto, mas também do ambiente hospitalar, da rotina
hospitalar e da equipe terapêutica. Pequenas modificações e grandes mudanças devem ser
consideradas, em micro e macro escalas, para realmente tratar um indivíduo que tem
dor.2
6. O TRATAMENTO DO DOENTE ONCOLÓGICO COM DOR
Considerando que sentir dor não é natural, ainda que compreensível, e que o
paciente tem o direito de não sentir dor, devemos agrupar esforços no sentido de aliviar e
controlar a sua dor, sabendo-a múltipla e dinâmica e adequando periodicamente o tratamento
oferecido.2
Os pacientes com dor teriam seis necessidades universais: conforto, evitação das reações
adversas, preservação das atividades funcionais diárias, prevenção da recaída, qualidade de vida
satisfatória e confiança renovada , sendo seis os princípios do manejo de dor: respeito ao
paciente e à dor, saber quando tratar a dor, tratar cedo e agressivamente a dor, tratar as causas
subjacentes à dor, tratar os aspectos psicológicos da dor, e a abordagem
multidisciplinar.37
O paciente oncológico pode apresentar também dor aguda, muitas vezes provocada por
diagnóstico e/ou procedimento terapêutico, sendo importante a analgesia inclusive preventiva
tanto desta quanto da dor crônica, procurando identificar e minimizar efeitos colaterais do
tratamento em todos os aspectos (fisiológico, funcional, cognitivo, social, psicológico). Em caso
de dor crônica, todas as demais terapias não farmacológicas são necessárias no esforço conjunto
de atender, dentro do possível, às expectativas do paciente promovendo maior alívio, conforto e
funcionalidade.2
Ao acolher e compreender a dor do paciente, o psicólogo da equipe o ajuda a identificar
as influências da dor na sua vida e as influências internas e externas na manutenção da dor. Ao se
trabalhar a identidade, a auto-imagem corporal, a auto-estima e a autonomia do paciente, amplia-
se o foco levando-o a ver além da sua dor e da sua doença, facilitando a elaboração de seus
novos limites e possibilidades através de ressignificações e redirecionamentos, sinalizando os
seus recursos adaptativos internos e estimulando o fortalecimento de suas relações interpessoais,
sociais, familiares e profissionais ou escolares.2
Como o indivíduo é singular, não se pode pretender que responda da mesma forma às
intervenções externas, nem tão pouco que mantenha uniformemente suas respostas a longo
prazo. Tratar um paciente requer não somente as considerações biológicas e psicológicas como
também as familiares, sociais, econômicas e aquelas que estão nas relações estabelecidas entre os
sistemas envolvidos: o indivíduo e seu universo e o sistema de saúde e de tratamento, com todas
as suas múltiplas variáveis. Não basta tratar a dor, mas também o paciente e, além dele, os
sistemas que com ele interagem.
Não se pode traçar aqui as várias dificuldades encontradas no empenho de um tratamento
adequado, pois para isto deve-se abordar desde os preconceitos ainda existentes entre nós até a
política governamental, mas é preciso atenção especial para a urgência de mudanças na avaliação
da dor em crianças e idosos, que, por dificuldades de comunicação inerentes à idade ou a
problemas subjacentes, têm sua dor muitas vezes confundida com "manha", "cansaço",
"incômodo" ou "tristeza", deixando assim de receber tratamento e controle de sintomas
devidos.2 Os adolescentes vivem, por sua vez, questões concernentes à esta peculiar
fase do desenvolvimento humano, oscilando entre a súbita maturidade, a infantil dependência e a
"rebeldia" na tentativa de diferenciação independência, podendo utilizar-se, perigosamente, de
aspectos relativos à sua doença e/ou à sua dor como parte deste natural exercício de busca de
identidade própria.2
Somente em dezembro de 1998 houve um consenso38 quanto ao manuseio da
dor em crianças, preconizando também para elas o sério e adequado tratamento farmacológico e
não farmacológico. Para tanto, é fundamental observar os familiares e cuidadores no trato com os
doentes e ouvir suas considerações, mas o profissional deve ainda identificar suas próprias
dificuldades e tentar superá-las. Perceber ou ter que aceitar que alguém, sobretudo uma criança,
um jovem, ou um idoso sofre de profunda dor e espera por cuidados que são sabidamente
limitados é difícil também para o profissional que, quando impotente, não consegue evitar seu
próprio sofrimento. Por isto pode-se dizer que a dor do paciente oncológico não é somente dele,
mas é sistêmica: é também de seu universo familiar, social , e de todos que dele cuidam e tratam.
É o que podemos chamar de dor geral.2
Além dos cuidados que visam o alívio da dor e a promoção da ampla reabilitação do
paciente oncológico, em todas esferas de sua vida, é preciso atenção aos cuidados paliativos, que
devem começar desde o diagnóstico de doença avançada até a fase final de vida. O conceito de
dor total foi cunhado em 1964 por Cicely Saunders para mostrar que a dor em câncer era
física, emocional, social e espiritual, sendo posteriormente acrescentadas a dor interpessoal, a
familiar e a financeira.39
Deve-se distinguir tratamento paliativo de cuidado paliativo. O paciente com dor e doença
avançada, mas que ainda é elegível cirurgicamente e/ou para tratamento adjuvante, difere daquele
ao qual só é possível oferecer algum tipo de conforto, mas nenhuma esperança de controle da
doença. Parece-nos que o "paciente tratável" investe mais em sua "melhora", mas também é mais
investido, tanto pela equipe quanto pelos familiares. Parece que o profissional "esquece" e ele
"não acredita" no caráter paliativo do tratamento, que só ficará claro quando ele receber o
"carimbo" de "fora de possibilidades terapêuticas atuais", o carimbo da desistência médica e/ou
institucional em tentar reverter ou conter o avanço da doença, quando então cessarão os
tratamentos, exceto os cuidados clínicos, os de enfermagem e aqueles oriundos de outras
categorias profissionais. Este é um momento especialmente delicado para todos.
Congruentemente com este "paciente cuidável", geralmente desmotivado, que está em
fase final de doença, a resistência da equipe, e a dos familiares, parece ir diminuindo.
Provavelmente seja este um mecanismo natural de defesa, pois começa-se a elaborar a idéia da
separação, pela morte, antes mesmo dela chegar. E isto ocorre de várias maneiras, desde o luto
emocionadamente antecipado, quando o profissional lamenta o estado do doente referindo-se a
ele como se já estivesse morto, até atitudes que à primeira vista poderiam sugerir certa frieza ou
alienação. Quanto aos doentes, há os que preferem estar rodeados por parentes e amigos e os que
optam pelo isolamento, pelo recolhimento paulatino da vida. É preciso haver compreensão e
respeito pelas diferenças, deles e nossas, sem contudo esquecer que o paciente ainda, ou agora,
sente dor, mesmo que muitas vezes já não consiga voluntariamente expressá-la. E sente angústia
e medo. Assim como aqueles que o rodeiam. E, resguardadas as proporções, como todos nós.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Freud9 dor, luto e ansiedade seriam reações à uma perda ou à uma
ameaça de perda de um objeto de amor, ou ainda à perda do amor deste objeto.
Nasio24 acrescenta que o objeto de amor pode ser a própria pessoa (auto - estima), ou
partes do corpo, ou uma outra pessoa, isto não importa, pois a amputação brutal de qualquer
desses objetos amados trará uma desarmonia psíquica traduzida por dor, não havendo distinção
entre dor física e dor psíquica, posto que "a dor é um fenômeno misto que surge no limite entre
corpo e psiqué".
Finalizando, parece ser importante pesquisar a amplitude de fatores que contribuem para
a experiência da dor, e as influências que ela exerce na vida da pessoa e em todos à sua volta. A
doença e/ou a dor já não são mais, isoladamente, o alvo do tratamento. Deve-se entrelaçar
diversos saberes ampliando o foco de atenção e cuidados para além do paciente, a família que
dele cuida e a equipe que dele trata.
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