Introdução Cinco milhões de mortes a cada ano, em crianças menores de cinco anos, são causadas por infecções respiratórias, sendo 70% destas, pneumonias.1 Os fatores de risco para pior evolução das pneumonias são principalmente cardiopatias, pneumopatias, imunodeficiências e desnutrição.2 Renda familiar menor que 50 dólares/mês, menor educação materna, aglomeração, poluição doméstica e ambiental e permanência em creches,3,4 também estão associados com pior evolução desta doença. Com relação à desnutrição, já está documentada a associação entre esta, resposta imunológica deficiente e ocorrência de infecções graves,5 com vários estudos referindo maior mortalidade por pneumonia em pacientes desnutridos.6-9 No Estado de São Paulo, pela melhoria das condições sócio-econômicas nos últimos anos,10 os casos de desnutrição grave estão cada vez menos freqüentes;11 entretanto a pneumonia continua a representar a terceira causa de óbito em crianças menores de 1 ano.10 Sendo assim, cabe questionar se casos de desnutrição leve ou alterações na composição corporal poderiam estar envolvidos neste processo. Na avaliação do estado nutricional, além do peso e da altura, Jelliffe,12 em 1966, já recomendava o estudo da composição corporal pela distribuição da gordura subcutânea e da massa muscular. Os métodos antropométricos mais usados com este propósito na prática clínica são as medidas da circunferência braquial e da prega cutânea tricipital, que têm como vantagens a facilidade de acesso, possibilidade de realização de medidas de campo em larga escala e poucas restrições culturais a medidas externas e não invasivas.13 A partir da circunferência braquial e da prega cutânea tricipital pode-se calcular a área de gordura e da área muscular braquial, o que possibilita a avaliação das reservas de energia e proteína.13 A diminuição da quantidade de músculo em relação à quantidade de gordura corporal parece favorecer a evolução para fadiga e insuficiência respiratória nos pacientes com infecções respiratórias.14 O objetivo principal deste estudo foi conhecer o estado nutricional e a composição corporal em crianças hospitalizadas por pneumonia; foram também avaliadas a idade, sexo, escolaridade materna e renda familiar per capita, e a relação de todos estes fatores com a presença ou não de complicações.
Casuística e métodos O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas em 10/08/1998 (parecer 090/98) e foi realizado no Pronto-Socorro de Pediatria do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas, com 85 crianças (3 meses a 5 anos) internadas com pneumonia no período de abril de 1999 a outubro de 2000. Estudo prévio realizado com a mesma população mostrou que a pneumonia é o segundo diagnóstico mais freqüente em nosso serviço, correspondendo a 15% dos casos atendidos.15 O cálculo do tamanho da amostra foi feito utilizando-se estudo piloto com 42 casos, a partir do qual se determinou o n para proporções.16 Para todos os responsáveis pelos pacientes envolvidos no estudo foi solicitada assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido. O diagnóstico de pneumonia foi realizado com base nos critérios clínicos estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde17 e pelo diagnóstico radiológico efetuado por médico da divisão de imaginologia do hospital. A internação hospitalar foi indicada para os casos de pneumonia ocupando mais de um segmento pulmonar na radiografia de tórax ou prostação, insuficiência respiratória e presença de derrame pleural. Os critérios de exclusão foram: pneumopatias crônicas, cardiopatias, doenças genéticas, imunodeficiências, doenças crônicas com desnutrição energético-protéica secundária, desnutrição crônica já diagnosticada, anormalidades da parede torácica, doenças neurológicas e crianças com aparelhos de gesso que impossibilitassem o exame antropométrico. Derrame pleural, atelectasia, pneumotórax, pneumatoceles, abcessos, ou evolução para doenças decorrentes da pneumonia, tais como o choque ou a insuficiência respiratória, foram considerados como complicações. Para todas as crianças foi preenchido questionário com nome, idade, sexo, escolaridade da mãe e renda familiar. A renda familiar per capita (US$) foi a quantia recebida pela família no mês anterior, dividida entre todos que a usufruíram. Na admissão hospitalar foi realizado um exame antropométrico composto das medidas de altura (A) ou comprimento, peso (P), circunferência braquial (CB) e prega cutânea tricipital (PCT). As medidas de altura foram realizadas em antropômetro horizontal para crianças até 2 anos (comprimento) e em antropômetro vertical para crianças maiores (altura). As crianças foram pesadas usando indumentária mínima, em balanças mecânicas; as crianças de até dois anos de idade foram pesadas em balanças para bebês (até 16 kg, com escala de 10 g) e as crianças maiores foram pesadas em balanças para adultos (até 150 kg e escala de 100 g). As balanças eram calibradas antes de cada pesagem, utilizando-se pesos de um quilograma e de dez gramas. A circunferência braquial (CB) foi medido no ponto médio do braço esquerdo empregando-se uma fita métrica de aço com largura de 0.5 cm e escala em cm e mm. A prega cutânea tricipital (PCT) foi medida no ponto médio do braço esquerdo com caliper da marca Lange.18,19 A circunferência braquial e a prega cutânea foram medidas pelo mesmo examinador em todas as crianças estudadas. A classificação de Waterlow20 foi empregada para avaliação do estado nutricional, adotando-se como ponto de corte escore z = -2 para altura/idade e peso/altura. Calculou-se o índice de massa corporal (IMC) pela fórmula IMC = P/A2; a área braquial (AB) pela fórmula AB = CB2/4 π, a área muscular braquial (AMB) pela fórmula AMB = (CB - π. PCT)2/4 π: e a área de gordura braquial (AGB) pela fórmula AGB = AB - AMB.21 Para crianças maiores de um ano, no cálculo dos escores z foram utilizados os dados de Frisancho (1993).21 No estudo da associação entre variáveis categóricas foram utilizados os testes do Qui-quadrado e o Teste Exato de Fisher. Para as variáveis não categóricas foi usado o teste de Kolmogorov-Smirnov.22 Realizou-se também uma análise de regressão logística (método forward stepwise),23 que incluiu no modelo como variável dependente a evolução dos pacientes (presença ou não de complicações) e variáveis preditivas independentes aquelas que nos testes de associação apresentaram p ≤ 0.10. Em todos os testes, o nível de significância foi fixado em 0.05 ou 5 %. Os dados foram processados no programa SPSS versão 1.1.0. Resultados No grupo estudado, encontramos 7 crianças desnutridas (8.2%), segundo a avaliação de Waterlow. sendo que destes, 3 (3.5%) apresentavam desnutrição aguda e 4 (4.7%) apresentavam desnutrição pregressa. Das 85 crianças internadas, ocorreu insuficiência respiratória aguda em 8 (9.4%), derrame pleural em 12 (14.1%) e atelectasias em 7 (8.3%). Com relação ao derrame pleuraL, que foi a complicação mais freqüente, a maior parte foi de derrames laminares ou de pequena monta (ocupando menos de 1/3 do hemitórax acometido); em 2 crianças houve associação do derrame à insuficiência respiratória e pneumotórax, necessitando drenagem do mesmo. O tempo médio de permanência no hospital foi de 4.27 ± 3.52 dias; não houve internações em terapia intensiva ou óbitos. As complicações foram mais freqüentes no sexo feminino (44.7%) do que no masculino (21.3%) (p = 0.03). Quanto à idade, a freqüência de complicações variou de 30.0% no grupo de 2 a 3 anos a 35.4% no grupo de 3 a 5 anos (p = 0.98). Quanto à escolaridade materna, verificou-se que 84.7% das mães possuíam 8 anos ou menos de estudo, sendo que somente 38.8% possuíam menos de 5 anos. No ítem renda familiar per capita verificou-se que 54.1% das famílias sobreviviam com menos de 1 salário mínimo per capita. A freqüência de complicações não mostrou diferença entre os grupos quanto à escolaridade materna (p = 0.62) e renda familiar per capita (p = 0.07). Com relação ao estado nutricional, pela classificação de Waterlow, 2 das 7 crianças desnutridas (28.6%) apresentaram complicações, enquanto 25 das 78 crianças eutróficas (32.1%) tiveram a mesma evolução (p = 0.60) (Tabela 1).
Foram incluídas na análise de regressão logística sexo e renda familiar per capita, permanecendo no modelo somente o sexo (odds ratio = 2.99, IC 95% = 1.16-7.72) Nas 53 crianças maiores de um ano, nas quais foi possível calcular o escore z do índice de massa corporal e do cilindro braquial não foram observadas diferenças estatisticamente significantes em relação aos índices circunferência braquial/idade dos grupos com complicações (-0.401 ± 0.55) e sem complicações (-0.585 ± 1.35) (p = 0.65) e prega cutânea tricipital/idade (-0.053 ± 0.82 para o grupo com complicações e -0.362 ± 0.92 para o grupo sem complicações) (p = 0.33). O mesmo ocorreu para a área de gordura braquial/idade (-0.212 ± 0.62 e -0.521 ± 0.92)(p = 0.15), área muscular braquial/idade (- 0.523 ± 1.05 e -0.399 ± 1.56) (p = 0.67) e o índice de massa corporal (-0.224 ± 2.60 e -0.562 ± 1.37) (p = 0.71) (Tabela 2).
Discussão Sendo a pneumonia a segunda causa mais freqüente de atendimento em nosso serviço, o estudo de fatores de risco associados a ela tem interesses científicos e práticos, pois o uso de índices prognósticos otimiza a utilização dos recursos disponíveis. Avaliação da desnutrição em crianças menores de 5 anos no Brasil realizada pelo IBGE em 1989 mostrou que 30.7% destas crianças eram desnutridas, sendo que 5.1%, apresentavam desnutrição moderada ou grave. Na mesma avaliação, nas regiões Sul e Sudeste, havia 20.6% de desnutridos, sendo 2.4% nas formas moderadas e graves.24 Ao final deste estudo verificamos uma proporção muito menor de desnutridos do que a esperada, o que com certeza influiu nos resultados encontrados, uma vez que a desnutrição está fortemente associada à evolução desfavorável das pneumonias na infância, principalmente nos casos de desnutrição grave.5-9 A ocorrência de derrame pleural, que foi a complicação mais freqüente, foi menor do que em estudo semelhante realizado na América Latina, onde foi observada derrame pleural em 61% dos pacientes hospitalizados por pneumonia;25 somente um de nossos pacientes com derrame era desnutrido. Em decorrência da baixa incidência de desnutridos no grupo estudado, não encontramos diferenças no estado nutricional e na composição corporal entre as crianças que evoluíram com complicações e as demais. Com relação ao sexo e faixa etária, a distribuição, com predomínio de meninos e de crianças menores de um ano de idade, foi semelhante à literatura;6 onde há descrição de maior risco de morte por pneumonia. Porém, ao contrário do esperado, houve maior risco de complicações no sexo feminino. Não encontramos associação entre maior número de complicações, menor escolaridade materna e baixa renda, assim como já verificado por outros autores,26 Reichenheim e Harpham,27 porém, verificaram maior número de infecções respiratórias que necessitaram hospitalização entre crianças com renda familiar menor que 63 libras (aproximadamente 50 reais, à época28); não houve, porém, associação destas infecções com a escolaridade materna. César et al,3 em estudo com 152 crianças, encontrou como principais fatores de risco para hospitalização por pneumonia: escolaridade materna menor que 4 anos; idade materna menor que 20 anos e renda familiar mensal menor ou igual a 180 dólares (aproximadamente 100 reais à época28). Na população estudada as condições sócio-econômicas encontradas são explicadas pela melhora do índice de desenvolvimento humano no Estado de São Paulo, que, de 1996 a 1998 foi de 0.868, comparável a de países como Portugal (0.864) e Espanha (0.899), enquanto que no Brasil como um todo este índice foi de 0.747. A escolaridade encontrada também foi maior do que esperado para a região do Estado, que é de 50.8% das pessoas com fundamental incompleto. Entretanto, encontramos uma maior proporção de famílias com renda menor que um salário mínimo per capita (54.1%) do que o esperado (15.7%).10 Portanto, a população atendida neste estudo possuía melhor escolaridade do que renda, o que poderia explicar as boas condições nutricionais da maioria das crianças. Concluímos que não houve influência de fatores sócio-econômicos na evolução dos casos de pneumonia estudados, assim como não foram observadas diferenças na distribuição dos parâmetros antropométricos, o que permite inferir que estas medidas não se mostram úteis na definição de prognóstico quanto a evolução com complicações em populações com baixa prevalência de desnutrição. Estudos com maior número de pacientes assim como a avaliação de outros fatores, como a resposta imune, principalmente celular5 e o estudo da deficiência de micronutrientes, como zinco, ferro e vitamina A,29 talvez possa cumprir este papel. Los autores no manifiestan conflictos.
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