O CORPO COMO OBJECTO DE MARCAS: MODIFICAÇÕES CORPORAIS E A PROCURA DE SIGNIFICADO
Marta Rodrigues
Estudiante avanzado, ex-aluna de Doutoramento, Doutoramento em Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Aveiro, Portugal
Aveiro, Portugal (SIIC)
Concluímos que a opção por um projecto de modificação corporal pode tratar-se de um processo de (re)descoberta identitária, que o corpo pode ser usado como espaço de expressão, afirmação e diferenciação. A dor é compreendida como um meio, tratando-se de um acto con(m)sentido e suportada por motivações várias que lhe conferem significado.
Vivemos numa sociedade extremamente visual na qual o corpo e a imagem são interpretados como sinónimos de beleza, em que existe uma forte tendência para a normalização do visual, ou seja, para a eleição de um padrão estético como norma - o corpo jovem bonito e saudável que segue a “lógica do sempre igual” - e foram demarcados territórios de legitimidade por igualdade e por diferença. O que segue a norma é bonito, o que diverge é inapropriado ou feio, e aqui residiriam as MC (modificações corporais), num espaço dedicado ao pouco ou nada atractivo do ponto de vista estético. Mas, mais importante que esta dicotomia castradora é o facto do padrão estético normativo vigente desconsiderar toda a subjectividade humana ao promover uma produção de corpos em massa.
Para alguns dos entrevistados as MC representam uma forma de expressão, e o corpo um espaço para essa mesma expressão. A pele marcada é investida dum simbolismo que implica sempre o outro para poder fazer sentido. O olhar sobre o corpo tem um papel central nas trocas sociais e a visualidade tem um papel de revelo da vida social. Ao divergirem face aos padrões habituais os sujeitos captam a atenção para si, tornam-se centrais como estímulo sensorial nas trocas sociais. É na relação com o outro e sob o seu olhar e avaliação, que o corpo marcado é legitimamente reconhecido como diferente. Através das MC os sujeitos sentem a reapropriação do seu corpo, ao mesmo tempo que procuram notoriedade e reconhecimento através de manifestações corporais explícitas de individualismo.
Outros dos principais determinantes desta escolha voluntária de metamorfesar o corpo, associa às MC a possibilidade de eternizar na pele conteúdos subjectivos e pessoais momentos, sentimentos, experiências, coisas, pessoas, fases, mudanças, celebrações. O corpo pode revelar-se espaço para a construção da narrativa pessoal, cada traço inscrito na pele é premeditado e conserva determinada memória ou experiência à qual está associado um sentimento que se quer recordar para sempre.
Explorámos também o impacto das MC nas dimensões pessoal, social e profissional e percebemos que o impacto negativo se faz notar com maior força. Os sujeitos mencionaram ter sido alvo de preconceito e discriminação. Tentámos então perceber o que justificaria este tipo de comportamento e questionando sobre como achavam que os outros se sentiam em relação às suas MC. Concluímos que os outros tendem a não compreender as MC e por isso não as toleram, reagindo de forma negativa, muitas vezes chegando até a sentir-se ameaçados por algo que para eles simplesmente não faz sentido. Por outro lado, acreditamos que este efeito de afastamento que as MC provocam nos outros possa simultaneamente desenvolver um efeito de aproximação entre sujeitos modificados, por se identificarem com a vivência de experiências de discriminação e preconceito em diferentes áreas de vida. Ainda neste sentido, Jetten, Branscombe, Schmitt & Spears (2001) corroboram o acima descrito ao explicar que a discriminação percebida é uma ameaça à identidade social e por isso resulta num movimento de maior identificação grupal. As percepções de discriminação reforçam a coesão entre aqueles que são alvo do estigma social, aumentando assim a coesão intragrupal e a auto-estima colectiva e reforçando a diferenciação intergrupal.
Os comportamentos de evitamento descritos são consequência da subversão simbólica e da desorganização estética que as MC e os indivíduos modificados provocam na realidade convencional dos outros. As aparências invulgares, extravagantes, coloridas, queimadas ou furadas, introduzem novidade e espectacularidade no quotidiano, invadem a rotina visual e criam desordem, o que para muitos pode ser vivido como uma ameaça à sua estabilidade e organização pessoal. São projectos corporais altamente subversivos e inovadores que colocam em tensão preconceitos e limites sociais com corporalidades e individualidades. Vão criar ruído e levantar questões quanto à relação com o corpo e com a sociedade, ou seja, vão abalar estruturas que, quanto mais rígidas forem, mais intenso será o impacto que vão sofrer ao contactarem com estéticas divergentes. Contudo, ao assumirem uma estética corporal divergente, construída com base nos seus desejos pessoais, não significa que queiram transgredir ou romper com a sociedade, mas antes diferenciar-se e destacar-se. A sua opção corporal não tem como finalidade a rejeição social mas antes, a procura e afirmação da sua individualidade.
As metamorfoses corporais intencionais são vividas como um processo de desenvolvimento pessoal e como tal, encaradas de forma positiva e satisfatória. E na medida em que não são episódios estanques, mas que constituem todo um processo de autodescoberta, evolução e reinvenção de si, exigem um compromisso de investimento do sujeito em si, no seu corpo, de aproximação da imagem ideal à imagem real, através de um projecto constituído por MC reflectidas e irreversíveis. “Esta é, em síntese, uma construção iconográfica totalmente pessoal e original”. Ao reescreverem a sua identidade através de um ensaio visual pretende-se que fabriquem a imagem mais fiel que têm de si próprios e devido à natureza permanente das marcas estas proporcionam a vivência de valores de consistência, unidade, durabilidade e realização identitária.
Em situações controladas como é o caso das MC, “o sofrimento que acompanha a dor é insignificante” na medida em que situações limite estão a ser testadas sob o controlo atento do sujeito, que pode optar por desistir ou fazer uma pausa a qualquer momento. A dor surge como um acto con(m)sentido, é suportada por motivações várias que lhe conferem significado e é uma dimensão consciente, voluntária e efémera. É um meio e não um fim, e sobretudo não é algo que aconteça de surpresa. Segundo Ramos (2001), a dor e o sofrimento das MC não causam traumas porque estão associados a uma promessa de prazer e a um benefício. Neste sentido, nem as MC no geral, nem as mais extremas em particular, devem ser associadas a práticas masoquistas, porque tal como evidenciou maioritariamente a nossa amostra, o impulso de marcar o corpo e o significado que lhe é atribuído não está associado à procura de qualquer tipo de prazer através da dor . A dor é apenas uma barreira para aceder à meta, é igualmente percebida como componente obrigatória para que se “autentique expressivamente a sua subjectividade” e para a apropriação do corpo. “A dor ainda que não protagonista contribui também para a construção simbólica da excepcionalidade do momento”.
As MC destacaram-se como marcas identitárias. O corpo marcado revelou-se uma superfície permanente de manifestação e realização pessoal, ao permitir ao sujeito a experiência do sentimento de si, no sentido da exclusividade do ser, da unicidade e da singularidade. A construção identitária que ocorre através das MC permite a distinção e singularização identitária ao ter como base gráfica um projecto que se afasta da norma, e que aproxima o sujeito de outros que comungam de projectos idênticos. Estamos pois perante um fenómeno que congrega uma dimensão individual com uma outra social, resultando num processo de integração e contínua diferenciação.