A polineuropatia amiloidótica familiar (PAF) é uma amilodoise hereditária,
de caráter autossômico dominante, secundária à deposição sistêmica de fibrilas
amilóides, compostas principalmente por monômeros de transtirretina
amiloidogênica (ATTR).1-4 Mais de 70 mutações diferentes já foram
descritas no gene da transtirretina, localizado no cromossoma 18, a maioria
associada à diferentes formas de amiloidose hereditária.2,4 A
transtirretina (TTR) é uma pré-albumina de estrutura tetramérica composta por
quatro monômeros idênticos de 127 aminoácidos, que apresenta uma conformação
tridimensional tipo folha β, propensa a se dissociar em monômeros pré-
amiloidogênicos. A amiloidose senil observada em câmaras cardíacas, em cerca de
20% a 30% dos indivíduos com mais de 80 anos, é associada a TTR normal.
Acredita-se que a presença de mutações nessa proteína aumente sua propensão
para dissociar-se em monômeros precursores de substância amilóide. A principal
função da TTR é o transporte de tiroxina e de retinol. Mais de noventa por cento da
TTR circulante é produzida pelo fígado, sendo também observada síntese da
proteína na retina e nas células do plexo coróide.1-4
Mutações em outras proteínas, como a apolipoproteina AI e a gelsolina, também
foram associadas a amiloidogênese. No entanto, a causa mais freqüente de
amiloidose hereditária é aquela associada a ATTR.
Existe uma classificação da doença em quatro tipos, de acordo com o fenótipo
clínico e com o tipo de proteína associada aos depósitos amilóides. A PAF tipo I e II
foram associadas à ATTR e caracterizadas, respectivamente, por polineuropatia
sensitivo-motora ascendente com disautonomia progressiva e por síndrome do
túnel carpiano seguida por polineuropatia generalizada. A PAF tipo III, por outro
lado, foi associada a polineuropatia periférica relacionada à presença de variantes
da apolipoproteina AI e a PAF tipo IV foi associada à neuropatia periférica e de
pares cranianos, associadas a mutações na gelsolina.1-4
A descoberta de novas mutações no gene da TTR, associadas a fenótipos distintos
daqueles descritos nos tipos I e II da PAF, assim como a raridade dos tipos III e IV
da doença, que só foram observados, respectivamente, na Escandinávia e em Iowa
(EUA), tornaram esta classificação de pouca utilidade na prática clínica. Costuma-se
caracterizar a PAF, atualmente, de acordo com a variante protéica a ela
associada.2 A forma mais comum da PAF caracterizada pelo fenótipo
acima descrito para a PAF-1 é aquela associada a ATTR Val30Met. Outras variantes
da ATTR foram associadas tanto à ocorrência de polineuropatia periférica quanto a
determinadas características clínicas peculiares, tais como amiloidose cardíaca nas
ATTR Ser50Ile, Thr60Ala e Ser77Tyr; síndrome do túnel carpiano nas ATTR
Ile107Val, Lys70Asn e Val71Ala e catarata nas ATTR Lys70Asn e Val71Ala. Por
outro lado, cardiomiopatia amiloidótica isolada, de padrão restritivo, foi também
descrita em portadores da ATTR Val122Ile.2-4
Heterogeneidade clínica também foi observada em pacientes com PAF portadores
de ATTR Val30Met.4,5 Esta mutação está associada a forma mais
freqüente de PAF, encontrada no Norte de Portugal, Suécia, Japão, Bacia do
Mediterrâneo, Brasil e Argentina6-12 e embora a maioria dos
pacientes portadores de ATTR Val30Met tenha um fenótipo semelhante (tabela 1),
determinadas peculiaridades clínicas, particularmente no que se refere a
penetrância da doença e à idade ao início dos sintomas, foram observadas nestas
diferentes regiões geográficas.6,10,13-15

A doença é endêmica no Norte de Portugal, particularmente nos distritos de Póvoa
do Varzim e Vila do Conde, onde 1 233 pacientes, portadores de ATTR Val30Met,
provenientes de 489 familias diferentes, já foram identificados até
1995.6 Nestas regiões, a penetrância da doença é alta, levando a
uma prevalência estimada de PAF de 1:1 108 habitantes. A idade média do inícío
dos sintomas dos pacientes acometidos é de 31 #177; 7 anos, tendo as mulheres
idade significantemente maior quando comparadas aos homens. Início mais tardio
de doença foi também observado em pacientes cujos pais não apresentavam
sintomas de PAF e em indivíduos provenientes de outras regiões de Portugal, onde
a prevalência da doença é reconhecidamente baixa.6,16 No Norte da
Suécia, por outro lado, a penetrância da doença foi estimada como muito
baixa.7,8 Cerca de 1.5% da população dos distritos de Piteå,
Skellefteå and Umeå são portadores de ATTR Val30Met e apenas 2%
deles apresentaram sinais ou sintomas de PAF. Quando comparados aos pacientes
portugueses, os suecos acometidos por PAF apresentam início bem mais tardio dos
sintomas, com idade média de 56 anos no início da doença.7,8 Esta
mesma característica foi também observada nos pacientes franceses, portadores de
ATTR Val30Met, que apresentaram idade média de 54 anos ao início da
doença.17
No Japão, existem duas áreas de maior prevalência da doença, na cidade de Arao
na ilha Kyushu e na vila de Ogawa na ilha Honshu, onde foram identificados,
respectivamente, 165 e 172 pacientes com PAF associada a ATTR Val30Met. Em
outras regiões de baixa prevalência da doença no Japão, foram identificados 43
pacientes com ATTR Val30Met, além de vários indivíduos portadores de outras
variantes de ATTR.3,18 Algumas características peculiares da doença
foram observadas, quando pacientes com ATTR Val30Met, oriundos de regiões com
baixa e alta prevalência foram comparados. Caracteristicamente pacientes de
regiões de baixa prevalência apresentavam início mais tardio de doença, maior
preponderância do sexo masculino e sintomas autonômicos discretos ou
ausentes.10,14 Estudo recentemente conduzido demonstrou que a
expressão clínica da doença no Brasil é muito semelhante aquela observada em
Portugal, com alta penetrância e início precoce dos sintomas, com mediana de
idade de 32 (20-44) anos à apresentação da doença.15 O início da
doença nos brasileiros também foi mais precoce em homens e em pacientes cujos
pais foram também acometidos pela doença. Os sintomas iniciais da doença
também foram semelhantes e incluíram manifestações de polineuropatia sensitivo-
motora em todos os pacientes, com exceção de quatro, que apresentaram perda de
peso inexplicada (n = 3) e dor abdominal (n = 1).
O curso clínico da PAF, uma vez estabelecida a doença, é progressivo, sendo
caracterizado por sintomas ascendentes de polineuropatia periférica sensitivo-
motora, disautonomia, caracterizada por alterações de motilidade gastrointestinal,
hipotensão postural, impotência, incontinência urinária e bexiga neurogênica e
desnutrição acentuada. Arritmias e insuficiências cardíaca e renal também podem
ocorrer mais tardiamente. A doença é geralmente fatal 10 a 15 anos após o
diagnóstico.4,18-20 O único tratamento eficaz disponível para a PAF
é o transplante hepático (TH), visto ser o fígado responsável pela síntese de
aproximadamente 90% da TTR circulante.21,22 Mais de 500
pacientes com PAF já foram submetidos a transplante de fígado23
com sobrevida pós-operatória variando de 75% a 88% em 1 ano e 60% em 5
anos.23-30 A maioria dos pacientes apresentou estabilização ou
melhora dos sintomas decorrentes da polineuropatia periférica e da disautonomia
alguns meses após o TH.22 O prognóstico a médio e a longo prazo,
no entanto, correlacionou-se ao grau de desnutrição e de má-absorção prévias,
apresentados pelos pacientes no pré-operatório. Um índice de massa corpórea
(peso [kg] / altura [m2]) corrigido pela albumina (x albumina [g/dl])
(IMCc) menor que 700 foi associado à maior mortalidade, sendo utilizado na Suécia
como critério de exclusão destes pacientes para o TH.22,27 Outros
parâmetros associados à maior mortalidade após o TH foram identificados, tais
como presença de incontinência urinária estabelecida, refletindo a disfunção
autonômica, e score de Norris menor ou igual a 55 na avaliação pré-operatória para
o TH.30 No Brasil, mais de 24 pacientes já foram transplantados
com diagnóstico de PAF, sendo observada sobrevida de 74% após seguimento
médio de 13 [1–70] meses.29 Apesar de grande parte desses
pacientes terem sido submetidos ao TH em fases avançadas da PAF, a maioria
(88%) dos pacientes apresentou melhora e/ou estabilização dos sintomas da
doença. No entanto, o principal fator associado à maior mortalidade foi a duração
da doença antes do TH. Todos dos pacientes com sintomas de PAF por mais de 7
anos antes do transplante faleceram após o procedimento. Parâmetros nutricionais,
particularmente hipoalbuminemia, também foram associados a evolução
desfavorável após o TH, no entanto o IMCc não foi um parâmetro prognóstico
significante entre as variáveis analisadas.30
O transplante hepático, portanto, é considerado uma alternativa terapêutica eficaz
para o tratamento da PAF, devendo ser indicado precocemente logo após o
diagnóstico da doença.22 Esta estratégia é importante para impedir
a progressão da doença e evitar o surgimento de lesões irreversíveis que alterem a
qualidade de vida e a sobrevida peri e pós-operatória. A presença isolada da ATTR
Val30Met, em indivíduo assintomático, não constitui, de forma alguma, uma
indicação para transplante, pois a penetrância do gene é extremamente variável e
alguns indivíduos portadores da mutação nunca desenvolverão a doença.6-
8,16 Não existem contra-indicações absolutamente reconhecidas para o TH
na PAF, no entanto, na presença de doença avançada e incapacitante, desnutrição
acentuada, insuficiência cardíaca e renal, o procedimento geralmente não é
aconselhado.22 Transplante duplo, respectivamente de fígado e
coração e de fígado e rim, podem ser alternativas aventadas nestas duas últimas
situações. Pacientes com algumas outras variantes genéticas raras da TTR, como
Ser52Pro, Glu42Gly and Glx60Ala, podem apresentar acometimento cardíaco
progressivo a despeito do TH, devendo o procedimento ser indicado com extrema
cautela nesses pacientes.22,31 Os parâmetros prognósticos acima
mencionados, embora não tenham sido validados prospectivamente, podem ser
úteis na avaliação individual de portadores de PAF com doença mais avançada
candidatos ao TH.
Los autores no manif¡estan conflictos.
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